18 de mai. de 2012

cegueira

«Eu só tive um verão e associo sempre o calor a ele. E tu tiveste todas as estações com ele, e mais do que uma vez. Não consigo imaginar como seja... [a cisão]».

Acima de tudo?
É muito arrependimento.

Hoje também me perguntaram se mudaria alguma coisa no meu passado (a pessoa não me conhece bem).
Mudava isso.

Quando um dia os meus netos me perguntarem se nunca fiz disparates, responderei:
Fiz o maior deles todos, desperdicei muito tempo, abri uma porta que nunca devia, sequer, ter existido... mas acordei a tempo de construir uma vida nos alicerces certos.

É comigo, é comigo que não consigo lidar.
É comigo, com o tempo, com as ilusões.
Onde é que eu estava com a cabeça?
Onde é que estive com a cabeça durante tantos anos?
Desconfio que nunca me vou perdoar por esta.
Estou horrorizada com o quanto uma pessoa se pode enganar na vida. A si próprio, aos outros. O quanto pude deixar que me enganassem e eu sem ver e sem poder defender-me.

O amor é uma merda destrutiva.
A fé é uma merda destrutiva.
Lutar, à revelia de tudo o que sempre nos disseram, por vezes só leva à auto-destruição.
Lutei mais e durante mais tempo do que alguma vez vi alguém lutar.
Cada movimento em vão.
Tantas lágrimas...
Tanto desespero...
Sou péssima estratega.
O egoísmo... oh, o egoísmo,
O egoísmo de acreditar que esta luta, que era minha, traria frutos...

Não fui a tempo de evitar esse erro gigante.


Uma pessoa só tem que saber aceitar que a história não é a sua...
Não, esta história não é a minha.
Ao menos isso, despi-me do feio.


end of the war


I’m mourning. I’m strong enough to deal with the loss, and I’m doing fine - better than fine, once I thought I’d die - but I still lost something. Something that meant a lot to me. Something that kept me floating for the last years. Something that, at times, felt so right that it couldn’t be wrong. I thought it would be my future. A love of a lifetime. And I wanted to be capable of such love - I won my own bet. I am capable of such love. I am, it would be forever and forever wouldn’t be that long. But I wasn’t allowed to keep forcing myself. I needed to close the door. Thank god I did or my death would be now. I don’t care anymore. I don’t care if I’m here or in China, if this love of once is here or in China. 


Now I long for something true. This was a dirty game - at times felt so pure... so overwhelming... - I was the one overwhelmed. Maybe it’s not man's nature to deal with innocence. I was näive, at times. But I was also a warrior and I fought as long as I could fight. As long as it was dignifying. I lost my dignity at times, I did. I put aside something that I would need for my entire life in order to experience one minute of absolute happiness. And I was so drunk inside - so driven, so taken - that this moments exists better in my dreams than in my memories. I regret it now, because eveything else will always taste like nothing. I regret it and I feel ashamed of it. Shame brings me to my knees. What have I done? How much time did I waste? But, most of all... I’m intelligent, am I not? So how did this happen to me among all people? I always knew men are not to be trusted. Men lie in order to keep women tied down to their feet, men put women in shelves and use them when it suits them. Men pretend to love, pretend to care. But in the end, their notion of “we” is limited to themselves and their dicks. Also, men like to be cheated on. Men like bad girls, independent women, women that do not need them at all, so that they can crawl, and beg and chase them with nothing in return. If they say yes, they feel like they’ve won a war. Such triumph, to collect a prize like a woman that needs no man. As a result? They cannot be accused of not loving - he’s being rejected, if she says no. But still, they maintain their hands full of nothing, which is how they feel comfortable.


And I? Oh I wanted to be capable of such a love... a whole life love, a love of my life love. A fifty-year old marriage, a handful of kids, a face carved with wrinkles, the path of souls connected with the passage of time. Forever. Always and forever... and, as Vinicius de Moraes once said, it only needs to be eternal while it lasts. And I got my lesson, one that I always suspected of: I am, I’ve always been, capable of such a love. Nothing superfluous, nothing empty and nothing regular and casual. No, hand in hand means love. And love means always and forever, means giving your life for the one you love, means support and distance and sleepless nights, and worries and expectations and unconditional affection. 


Turns out that, in a way, I’m proud of myself. I’ll go through life knowing that I am capable of such a love. And I proved myself that no one would ever deserve that love (not that I meant it). So this is the reason why I’m mourning. Not that I miss the lie I was in. Not that I longer for that suffering again. I’ve been bad, I’ve been down, I’ve been dead. I’ve been misunderstood and I’ve been trifled with. I ended up alone - not physically alone, that you can choose, but spiritually alone. He doesn’t fit. No one will ever fit. No one will ever want to fit and I started to don’t want anyone to fit. But I’ll live my life - oh yes, I will. I’ll be honest, I’ll be true, but I’ll live my life. And I’m mourning the death of the only time - it took me a war and it costed me the hardest loss - that I thought that maybe, just maybe, I was going to be one of those people that is allowed to be ridiculously happy in their existence.

4 de mai. de 2012

and I lost my trust


A tecla mais fácil de encontrar num teclado, mesmo de olhos fechados, é o enter. É tão fácil quanto tactear na mesa-de-cabeceira e encontrar o telemóvel de imediato. Tão familiar quanto isso. Foi-me difícil encontrar o enter num escuro absoluto, mas encontrei e acendi a luz. Depois, infinitamente mais difícil, foi encontrar o delete. Mas eu encontrei, e apaguei a luz e fechei a porta quando saí. Levei as malas e os livros. Não sou uma pessoa fácil, eu sei disso. Tenho princípios diferentes. Meio abrupta, meio rude. Despejo uma dose de mim que nem todos conseguem digerir à primeira. Correndo o risco de ser injusta, ou snob, até gosto disso. Só me interessam aqueles de estômago forte – e algum humor irónico – capazes de me digerir de enfiada. Tenho meios diferentes. Não creio que seja fácil conviver comigo, não sou uma pessoa previsível, confesso que tiro algum prazer de ver queixos caídos. Isto até podia ser engraçado – é-o, geralmente – porque estou rodeada das pessoas que amo e que me querem bem igualmente, e esses já me digeriram e digerem-me diariamente. Mas, simultaneamente, não creio que tenham certezas, a cem por cento, de que dose de mim virá nesse dia. Tanto rio como choro. Sou como uma escarpa meio aguçada. Os meus fins não são os habituais. Podem ao menos acreditar, sem reservas, que não tenho – não, não teria coragem de cumprir pragas lançadas em momentos de raiva ou frustração – segundas intenções ou maldades em vista, em momento algum? Quando os meus punhos acertam em alguém, é porque precisei de espaço para me defender. Precisei, também eu, de espaço para digerir. E esta característica cria um mal-entendido que me tem causado dissabores: eu não sou uma rocha indestrutível, e se me baterem com força eu desfaço-me em pedrinhas e lá vou com a erosão. Não fiquem a rir-se a pensar que me materializo de novo em pedra, apanhem-me, reúnam-me, antes que as ondas e o vento e o sol me danifiquem...


 I’ll see you soon… Esta obra-prima dos Coldplay faz tanto sentido agora… Sou impaciente demais. Quis que a vida viesse, alegrias e tristezas, aos pontapés ao meu redor. Quis que ela acontecesse de rompante. Tudo ou nada. Eu sempre soube que era uma lição a aprender nesta vida – com o BI nº tal. Com um metro e meio e um peso ridículo. A paciência, esse monstro de lentidão e desperdício temporal. A vida, contudo, não deposita, nos ombros de ninguém, um fardo maior do que aquele que o talhou para suportar. Lembrem-se disso. Eu lembro-me com frequência. Mas é um facto de que virão muitos momentos de impotência ao longo da vida. Escolhas difíceis. Por motivos diversos – só meus – frequentemente magoarei aqueles a quem mais quero proteger. Digo eu que magoo, porque tenho a pretensão de ter essa importância para eles. O amor, essa merda destrutiva, destruiu-me. Desde que era um pequeno barquinho a remos, a flutuar perto da costa com âncoras sólidas, veio em ondas e virou-me. Tantos anos convivi com ele (o amor) como amigo, como salvação… tantas vezes julguei que o amor seria o meu guia através da vida, que ver-me assim desprovida do seu conceito original, aquele pelo qual me guiei, me entonteceu. Desfez-me, em parte. Renasceu-me de outro lado. Aprendi que a vida era mais do que aquilo que pensei dela. É mais do que querermos dá-la por outrem – assim sem mais nem menos, sem um inquérito ou uma avaliação profunda. É mais do que não nos conhecermos valor algum se não condicionado pela nossa própria capacidade de pôr a nossa vida ao dispor de outra, de salvá-la, de levar murros e tiros por ela. Aos olhos de outrem, que espectáculo patético de falta de valor. 


Foi uma surpresa descobrir que tenho algum talento para atrair as pessoas para o meu lado. Novamente a pretensão… mas e se for verdade? Se, realmente, atraio para mim quem precisa de rir, de se distrair, de saber que alguém não receia juízos de fora nem más primeiras impressões? E se realmente reuni à minha volta pessoas que sorriem, noite dentro, tarde fora, porque é esse o meu dom, mais do que a escrita? Gosto de ouvir os risos alheios, faz-me sentir útil. Algum propósito tinha de ter. Une as almas numa harmonia segura, plena de confiança temporária e propícia a cegueiras futuras. Mas agradável de digerir...


O que aprendi, recentemente na vida, é que frequentemente somos privados de nos sentar a uma mesa de café com todos aqueles que são essenciais ao nosso próprio riso. Não voltarás a rir dos meus disparates? Não voltaremos a rir juntos, a trocar um olhar e a ler os olhos do outro com um encolher dos ombros? Não voltaremos a ficar em silêncio solene quando o assunto se afigura sério, nem a quebrar a crispação com uma piada fácil que mete o outro a sorrir? Não precisávamos de falar, sequer... Isto deve ser único, não? Nem isso era necessário. Eu sabia exactamente aquilo em que estavas a pensar. E tu comprovava-lo. Também me leste as ideias algumas vezes, mais do que agora gostaria que tivesse acontecido. Sabias tudo de mim, da minha alma nua permanentemente perante ti. Provavelmente foi isso que te aborreceu. Um livro grande e complexo, indecifrável em certos trechos e desconcertantemente claro noutros. Parágrafos em latim arcaico, outros em português corrente. Abri-te demasiadas secções. Disse-to tantas vezes… demasiadas vezes… devia ter-me calado, devia ter guardado para mim o facto de a tua vida me importar mais do que a minha própria. Mas não sou boa estratega. Não sou adepta de jogos de xadrez… nem ao computador, no nível de principiante, consigo ganhar. Mas ainda assim julguei que havia, algures,  um quebra-cabeças que pudesse resolver e que colocasse tudo nos sítios certos. Eu, a crente. 


Quando alguém nos aperta com o cotovelo pelo pescoço, confiamos que sabe o que está a fazer - por muito que esteja apostado em intimidar-nos nesse momento. A dado momento há-de soltar-nos. Sofrerá consequências se não nos soltar. Quando nos vir a arroxear, a sufocar, a perder a voz, há-de soltar-nos. Confiamos que a dor, o desconforto, só são suportáveis até certo ponto. E quem nos aperta sabe-o. E, mais cedo ou mais tarde, o cotovelo afrouxa e o ar volta a inundar-nos os pulmões. Era (quase) certo que assim seria. E a vida? E se a vida for um acaso? Já suportei dor suficiente para sufocar. Já morri e renasci n vezes. E se a vida for, a certo ponto, um joelho sobre o nosso peito, a esmagá-lo e a impedir-nos de respirar, e não souber o que fazE não souber que o peso é demasiadoE não souber que não vamos sobreviver? E agora o lugar-comum: e se, afinal, nada fizer sentido porque a vida, o mundo, deus, que seja, não tem consciência de lógica alguma funcional? E se as coisas acontecem por acontecer e, no fim, ninguém dá lições a ninguém, ninguém aprende nada com ninguém, ninguém sente a falta de ninguém, ninguém ganha nada em jogar seguro, assim como ninguém ganha nada em jogar sujo? E se a soma total for sempre zero e o saldo nunca puder ser positivo? E se este for o final da história e as pontas ficaram soltas? Perguntas, dúvidas suficientes para sustentar toda uma tese sobre o absurdo das coisas? Da vida? Das histórias pessoais? A porta tem sete trancas a mantê-la unida à ombreira e as explicações nunca vieram. A lógica nunca esteve presente, foi presença ausente a cada novo capítulo. Nem sequer compareceu ao epílogo. E se isto é tudo o que tiraremos da existência, um grande ponto de interrogação?


E se eu só faço realmente sentido assim? Consciente do que é tristeza, vazio e sofrimento, para que obrigue os outros a rir à noção de que podem estar tão apagados quanto eu? Tão a precisar de varrer ideias da cabeça quanto eu? E se eu só funcionar assim, a vida inteira, porque só assim aprendi e só assim posso passar alguma aprendizagem? Calma, isto já é assumir que as coisas sabem o que fazem e que têm algum propósito.


Nada fez nunca tanto sentido quanto um cigarro a consumir-se a si próprio na atmosfera nocturna. Diziam que a lua hoje estaria maior – não notei diferença. Foi só a minha lua de sempre, a pairar sobre a minha cabeça… Era só Coldplay e as velhas palavras de sempre ao meu ouvido, meus e de mais ninguém. Um silêncio absoluto no mundo em redor. E só assim eu posso mergulhar em mim e manter o equilíbrio. A prostração. O comodismo de encolher os ombros perante o inevitável. A coragem de galgar o que pode ser vencido. 


E se, só magoando, puder evitar ser novamente magoada? E se, só mantendo quem mais amo  – e quem, consequentemente, mais estaria em posição de me destruir novamente no futuro – longe, é que posso sobreviver vida fora, sem contemplar águas pardas de rios nem braços de pedra cinquentenários? E se tudo foi nada, e eu um nada maior no meio de tudo?


E se as pessoas não foram criadas separadas para se juntar, mas juntas para se despegar? Para se soltar, para se libertar, para percorrer caminhos existenciais a sós, consigo mesmas, sem juízos nem influências nem âncoras físicas e o mundo como palco da viagem de aprendizagem pessoal? Uma pessoa é uma coisa tão limitada que, por vezes, toma a forma de uma rua. De uma cidade. De um livro numa língua estrangeira. De um cobertor velho cor de salmão. De uma camisola cor-de-rosa às bolinhas brancas. 


O que me assusta é o quanto mudei. O quanto era apegada à proximidade. O quanto aprecio a distância. O quanto quero mantê-la. O quanto sofro com os oceanos entre duas almas e o quanto respiro fundo por estar do outro lado. O quanto me custou atravessar o oceano para lhe ir juntar, e o mais ainda que me custou ser lá mal recebida. E como sei que, desta vez, a viagem teria de ser no sentido inverso, queimei a carta da espera. O homem atado. A viagem teria de ser no sentido inverso, e sem certezas de que o outrora homem atado estivesse à espera (e atado). A viagem teria de ser com todos os naufrágios que sofri pelo caminho a molharem outro rosto. Com outras ilhas de canibais a cobiçarem outra carne. Com outras vozes a falar em descrença e a rir de troça. Outro cenário a quebrar a fealdade que, creio, é irreparável. Agora, a viagem teria de ser da montanha ao Maomé. O Maomé nunca conseguiu subir a montanha. A montanha não quis que lhe chegassem ao cume. Estou estupefacta com o quanto determinada hora me puxa a determinado lugar e com o quanto fujo desse lugar quando essa hora chega. Tudo ou nada. Mas um nada tranquilo, digno, respirável. Eterno.

Perdi-me, ou encontrei-me finalmente?
So maybe, just maybe, I’ll see you soon.
Because oh, I lost my trust.





NOTA: Além desde blogue, administro outros dois. Um deles criado por engano. Hoje decidi, finalmente, ir à ajuda do blogger descobrir como apagá-lo. Por engano, apaguei este e por um instante caiu-me tudo. Tudo, literalmente. Muitos destes textos não tem backup. Só me vinha à ideia a mensagem: ARE YOU ABSOLUTELY SURE THAT YOU WANT TO DELETE THIS BLOG? E a minha determinação quando cliquei SIM. E depois vejo qual tinha apagado, e ia tendo uma apoplexia. E então diz, em baixo: se quiser recuperá-lo, pode fazê-lo por um período limitado de tempo logo após a eliminação. Operou-se um milagre aqui... e logo neste post. Se é uma lição sobre não apagar de olhos fechados ou sobre recuperar é que não sei. Mas isto tinha de vir documentado, para me recordar que ia atirar fora uma parte importante da minha vida, aqui tão bem registada.

27 de abr. de 2012

porta azul - aldeia

se pudesse escolher algo que soubesse que me traria paz e conforto, pediria uma vida pacata numa aldeia. numa aldeia de chão empedrado, casas de xisto, ou granito, ou cal e faixas azuis, com portadas de madeira na janela. um sítio onde no inverno fizesse muito frio (e o vento uivasse pelas ruas estreitas à noite) e no verão fizesse muito calor (e a atmosfera crepitasse a meio da tarde). um sítio onde, ao cair da noite, pudesse pôr uma cadeira à porta e sentar-me a ver quem passa com um livro no colo, a aproveitar os últimos resquícios de luz solar. um sítio onde me cumprimentassem com acenos e bastasse. um sítio onde a roupa ondulasse no estendal, à janela do primeiro andar, e de onde visse estrelas em céus azuis profundos, como diamantes num manto de veludo negro, do parapeito da minha janela. ao longe, o contorno indistinto dos montes, como lençóis deitados sobre a rudeza da terra, sobre a insignificância dos vermes que dela se alimentam. o calor da terra a evaporar, os pés descalços depois do banho, ao sacudir a toalha à porta. a fragância da comida a ser preparada nas casas vizinhas, os trinados dos pássaros e as vozes das pessoas. a tosse das pessoas. as interjeições, os suspiros, as asneiras das pessoas. a vivência das pessoas, a meu lado mas sem me tocar. a vida a vir e a levar-me aos poucos, no abraço do tempo, a beijar-me ao de leve a pele e a cobri-la de rugas, mas o tacto não pode levar. o olfacto não pode levar. e eu quero viver esse frio com a ponta dos dedos e do nariz, esse calor com a planta dos pés e o suor das têmporas. sozinha, quero tanto ser ninguém numa terra com pouca gente. quero muito, mais do que muito... quero que o meu gira-discos seja algo de estranho para os idosos. quero ser uma amiga, um elemento mais novo - esquisito, deslocado - para todos. não faço parte deles, mas também não faço parte de onde era suposto fazer. a palma das mãos sobre a textura das paredes. as casas. as chaminés a expelirem fumo branco contra a noite profunda. meia dúzia de candeeiros de rua no perímetro completo da aldeia. crianças - poucas durante o ano - a encherem as ruas em agosto. um pouco de ingenuidade. um pouco de memória do passado. um pouco de decência. um pouco de amistosidade despretensiosa. um pouco menos de preocupações. um verão eterno - eu, que sempre lhe preferi o inverno - um verão eterno para eu me refrescar na fonte pública mais próxima. para me sujar de suor, os pés do saibro, e para me meter sob água fria de hora a hora. o sol a pôr-se e o sufoco insuportável das luzes acesas às nove da noite, quando o escuro finalmente nos embala. árvores, pássaros, flores e húmus. as curvas sinuosas dos montes, as casinhas recortadas ao longe. a bengala da vizinha, o sorriso do padeiro, o buzinar da carrinha dos gelados. o odor intenso a café, quando nos juntamos para um breve convívio - sim, porque eu tenho que voltar aos livros, aos por ler e aos por escrever. abdico assim da vida. de coração - sem tristezas, sem promessas de não voltar a querê-la, mas abdico com relativa alegria. há vida na imaginação, há dignidade na simplicididade, no pitoresco. e eu quero essa onda de benevolência sobre mim. se pudesse... é o que pediria. um chão quente para pisar, uma cadeira à sombra onde ler, um burro carregado de palha anunciado pelo eco pachorrento dos cascos. um rebanho de ovelhas com os sinos a tinir, o pastor a deslocar levemente o chapéu para me saudar. e eu sentada. a ler, a escrever, longe dali, ali, em todo o lado, com suspiros de satisfação, de gratidão, de certeza de estar no sítio certo e na vida mais rica em que me consigo imaginar. até me fartar. um recanto de silêncio e de busca por mim própria, um retiro para a alma e para o corpo. um regresso à simplicidade de outros tempos, ao trabalho manual e ao respeito. pelos outros, por si, pela natureza. à sombra... numa cadeira, a viajar pelo mundo em livros. e o sol, que glorioso sol, sobre o chapéu de palha empoleirado no meu cabelo solto. livre.

9 de abr. de 2012

os homens que fingem amar as mulheres

Hoje chegou-me um pedido curioso de uma mulher que tem, creio, o dobro da minha idade. O problema dela, contudo, podia ser meu ou de qualquer outra mulher. Os homens, que não crescem, são o motivo central. Acontece que esta mulher – que compreendo a cem por centro – está presa num ciclo vicioso. Há um homem (um amigo) com quem se preocupa demasiado. Dizem que nunca a viram tão apaixonada na vida, e afinal o amor não é coisa de adolescentes, pode surgir e pôr doente a mais amadurecida das pessoas. Está apostada em dar-lhe um empurrãozinho para o ajudar a decidir-se mas, simultaneamente, o homem em questão sofre daquela espécie de ambiguidade de que os homens se valem para manter as mulheres cativas, e doentes, em redor deles. É demasiado atencioso. É ciumento. Gravita ao redor dela. Preocupa-se com o seu bem-estar. Recusa-se a dormir no mesmo quarto que ela, numa situação invulgar que o exigiu. Dorme no sofá enquanto ela passa mal no quarto, para garantir que está por perto se ela precisar. Se eu escrevesse isto num romance, ele estaria inevitavelmente apaixonado por ela. Na vida real…? Quem vai entendê-lo? São sintomas de amizade, os ciúmes? 

Eu entendo bem demais, minha cara. Os beijos na mão. Os olhares lascivos. A boca no ouvido a dizer que a deseja (ainda que por palavras menos próprias). Se algum dia o tocar, entendo até que derreta nas mãos dele e que ele pareça derreter nas suas. Mas não pense que o vergou. Não pense que lhe tocou lá dentro… isso são homens que fingem amar as mulheres. Que as metem na gaveta. Que lhes chamam princesas e as equiparam a rainhas e as sentam no colo e jogam um jogo em que as regras oscilam de sedução aberta para um desinteresse insultuoso. São homens que dizem admirar a sua força e que lhe desejam as maiores felicidades, mas que não dão o passo de assumir o lugar de homem notável a seu lado, por muito honrosa que digam que seria essa posição. Prepare-se para danças em que o nariz dele há-de aflorar-lhe o pescoço e elogiar-lhe o perfume do cabelo. Prepare-se para ver, inequivocamente, que a quer nos olhos dele. Quando ele abrir a boca, não se espante se disser que é tudo mentira e que você é que está a atacá-lo com ardis femininos, porque ele sempre a viu como amiga, quase irmã. Há-de querê-la – quando der jeito – e de a mandar embora quando se fartar. Quando a tiver manchado e magoado e quando a tiver destruído. Se ele for dos piorzinhos, é até capaz de o fazer debaixo do seu nariz, provavelmente para testemunhar a sua queda em primeira mão. Ou para a lembrar, com eficácia, de que não é ninguém na vida dele. 

Depois, prepare-se. Vêm as perguntas às quais nunca terá resposta: porque é que ele se preocupava consigo? Porque é que lhe sorriu naquela situação específica? Porque é que disse desejá-la se garantia, igualmente, que lhe era uma amiga preciosa? Prepare-se para a disparidade de argumentos, para a irracionalidade do jogo, quando tiver todas as peças na mão. Um conselho? Desista do puzzle. Deite-o fora. Ponha-o fora de vista. Acostume-se ao facto de que a vida não faz sentido e faça figas para que, da próxima vez que se apaixonar estupidamente, para que da próxima vez que deseje estupidamente alguém, e ele lhe diga que a deseja de volta, se trate de um homem com H grande que distinga amizade de sentimentos amorosos. E que meta o que é físico no saco da segunda. E que seja suficientemente seguro de si para não a magoar mesmo que seja tentado a isso, só para ver os estragos que ainda é capaz de causar. Simultaneamente, fiquei assombrada por descobrir que, aos 40 e tal, os homens ainda se prestam a estes jogos de avanços e recuos. Metam a cabeça no lugar. Se é a mulher forte, inteligente e corajosa que dizem que é, meta-o a ele na gaveta. Siga em frente. Pegue fogo ao quarto onde o deixou na cómoda.

Atenciosamente,

Da mulher que odeia os homens.

23 de mar. de 2012

no escuro

ontem, de madrugada, fui acordada pela luz do modem. foi a primeira vez que fui acordada pela luz azulada do modem. estava virada para a parede e a presença física do modem a violar o escuro da noite chamou-me. ainda não sei explicar - já tentei, mas não consigo - o porquê de, ao voltar-me para essa luz para identificar aquilo que me roubou à paz do sono, ter recebido uma estocada no peito. a saudade ecoou tão alto na minha cabeça que, por um momento, fiquei petrificada, estupidificada, por o modem ter passado para segundo plano na minha insónia, na minha consciência ainda trôpega e, de repente, só existir essa saudade. essa porta fechada. esses braços estendidos para o nada. uma dor tão forte que me pus a soluçar. sem motivo aparente, com o peso da ausência nas minhas costas. não posso contar os dias. não posso fazer-me isso. foi um aperto, uma angústia, um vazio tão grande e enorme que, se o mundo for infinito, eu seria infinitamente um nada só nele. apetece-me estender as mãos nesse nada e puxar-te para mim. na violência desse gesto, as lágrimas brotariam com naturalidade. não há palavras, foram todas usadas e mal empregues. não posso perdoar-te. a dor foi maior do que a de morrer e voltar. não voltei. fiquei no limbo. estou no limbo. a história é pior do que eu penso - paira ao meu redor, sussurra-me. eu não quero ouvir. só de porta fechada posso manter os ruídos longe. as intrigas. os novos pontos que me afundam ainda mais, só não querendo saber posso manter-me à tona. só assim posso abrir a boca em vão para respirar. não que haja ar mas, submersa, teria os pulmões invadidos por água salgada.

a história é tão feia que só um clarão como o de nagasaki lhe conferiria luz.
estou a secar. quero o fim da estrada. quero tanto o fim da estrada...

8 de mar. de 2012

meio dourado, meio lilás, meio azul

A minha hora favorita do dia continua a ser o entardecer. Hoje, especialmente, a tarde começou com o tom dourado das cinco e terminou com um lilás azulado com uma brisa que sabia a verão. Se me permitir sonhar alto, aqui tenho a imagem de tudo o que ambiciono neste momento:
A escrita a sustentar-me: não a sustentar carros nem gasolinas nem casas. Mas a permitir-me comer. E um canto numa aldeia qualquer. E, se pudesse, compraria o verão e tirava folga das palavras aos finais de tarde. Estendia-me numa cama de ferro, por entre a atmosfera abafada, com um qualquer vestido branco. O chilrear dos pássaros lá fora, numa paisagem qualquer rural. Árvores, tem de haver árvores porque, ao contrário das portas, eu não tenho problemas com árvores. Muitas árvores a explodir em verde contra a também explosão azul do céu. Mas calma, isto durante o dia. Porque ao entardecer tem de haver uma mistela de cores indefinível. Branco leitoso a tender para o dourado. Dourado a tender para o alaranjado. Alaranjado a tender para o avermelhado. O avermelhado a tender para o lilás. O lilás a tender para o azul. E queria estender-me sobre uma cama e, sobre essa cama, apenas eu e a colcha fina, também branca e florida, sobre a qual me estendo. E só tenho esse vestido no corpo, e está tanto calor, mal se sente a brisa. Quando se sente, levanta apenas os cabelos mais finos da testa. Sabe a mel, sabe a mundo. Quero que o calor me pique nas têmporas, junto à raiz do cabelo. E no espaço curvado entre o nariz e os lábios. E naquele recanto pequeno, quase inexistente, abaixo do lábio e antes da saliência do queixo, à sombra. E que me pique nas axilas, e erguer os braços sobre a cabeça traga aragem fresca e uma sensação de realização completa. Frescura. Arrefecer o que arde, o que dói. E que também as pernas, nuas, estejam cobertas de uma fina camada de suor, tão fina que não escorre, mas suficientemente aquecida para que, ao mover as pernas, possa também deliciar-me, raiar o êxtase, com a aragem que lhes vem tocar. E, conforme a tonalidade varia para voos mais escuros, conforme o chilrear dará, em breve, lugar à orquestra de grilos, quero que a brisa na minha testa seja mais perceptível. E, assim, serei infinitamente feliz por descobrir ar por entre o sufoco. Nada sabe melhor, neste meu verão inventado, do que descer da cama, já noite, e pousar a planta dos pés, fervente, nas lajes frias do chão. Daquele frio quase morno tão agradável. Neste sonho consciente moro sozinha e, se me rojar no chão, se me rebolar por um bocadinho, se me deixar tolher pela obscuridade de debaixo da cama, ninguém saberá. O telefone não toca. O computador não funciona. Lá fora já é noite. Ninguém me sabe debaixo da cama, como se tivesse voltado a ser criança. Ninguém saberia que, na minha própria casa, me esconderia debaixo da cama.