15 de nov. de 2010

les petites princesses

Eu tenho uma irmã de 4 anos que, quer queira quer não, tenho que tapar antes de me deitar. Usa pijamas cor-de-rosa, gosta que lhe conte histórias e sorri com facilidade. Desculpa, se não tenho conseguido falar-te no Capuchinho Vermelho, se não tenho conseguido sequer inventar uma daquelas histórias originárias da minha imaginação que têm sempre finais infelizes, mas que tu gostas. A meio, invariavelmente, adormeces. No dia seguinte, é como se a história não tivesse tido um final infeliz. Tentei ler-te «O Principezinho», mas na realidade o meu exemplar é antes o «Le Petit Prince», comprado em francês para ver se me familiarizo com a língua do Molière. No entanto, continuo uma desgraça, e é-me difícil traduzir fluentemente a obra-prima do Saint-Exupèry à minha pequena. Bom, dito nestes termos, faz-me recordar que o meu maior sonho sempre foi ser mãe. Há dias, no telejornal, dizia uma mulher que ponderava a fertilização in vitro «Eu sempre quis ser mãe, desde pequena sempre me imaginei com uma barriga enorme a escolher nomes de bebés... acontece que não posso ter filhos e o tratamento só existe em clínicas privadas e custa cerca de 5 mil euros». E é isso, a ciência pôs um preço nos filhos. Trouxe novas soluções, menos causas de desesperos. Ponho-me a pensar o que faz um casal optar por esse caminho - não posso censurá-lo, pelo contrário, quando o seu objectivo é somente experienciar a dádiva que deve ser ter um filho. No entanto, ponho-me a pensar se fosse eu... e se eu não pudesse, não puder, ter filhos? Toda a vida ouvi dizer que o que mais deseja da vida é justamente aquilo que ela não nos dará, para nos manter activos, em luta livre, até ao fim. E se fosse eu? Bom, não posso dizer nunca, mas não me parece que preferisse extrair óvulos, congelá-los, fertilizá-los através dos progressos da ciência e, nove meses depois, dar à luz dois ou três gémeos que a natureza, à partida, não tinha querido que eu concebesse. Atenção: de modo algum recrimino um casal que opte por esse caminho. Essas crianças teriam até talvez um motivo maior para serem gratos, a vida começou a expressar-se de outras formas que não a tradicional. Contudo... acho que optaria por adoptar uma criança. É claro que ia querer ver os meus olhos numa criança, o queixo do pai noutra, o cabelo da avó noutra, em pedaços de ser que tivessem saído de dentro de mim, que me tivessem dado enjoos e dores de cabeça e com quem eu tivesse pesadelos no primeiro ano de vida. Sim, com as minhas irmãs também tive pesadelos, li algures que é um sintoma tipicamente «maternal», maternal de típico de quem é mãe, não de quem tem cães e os trata como gente, acordar durante a noite com pensamentos negativos sobre o bem-estar das crianças. Eu acordava de sonhos em que queriam fazer-lhes mal, queriam levá-las, queriam magoá-las, e eu enfrentava o que quer que fosse. Era torturada mentalmente com ideias que eu própria me infligia de que elas caiam em precipícios, eram ameaçadas, ou simplesmente que obrigavam a escolhas como «só podes salvar uma, qual das tuas duas irmãs salvas?». Dei por mim, noites seguidas, a fazer um ranking das dez pessoas que amava mais. Depois, uma a uma, ia-a eliminando em prol das restantes. Terminava sempre o jogo com uma angústia enorme, mas daí a nada forçava-me a passar por aquela prova de novo, para ter certezas de que era por aquela pessoa que daria a via.

Nunca saí realmente do campo da imaginação. Já mencionei que a minha irmã de quatro anos deixa lápis de cera por todo o lado e que, quando me deito, tenho que afastar canetas de feltro e folhas amarrotadas? A um canto, caído, estava o meu único peluche; uma ovelha oferecida no meu aniversário passado chamada Frannie (Francesca). Não sei explicar o porquê daquele nome, talvez que continuo a querer tanto fugir daqui que nem os nomes concebo em português.

Tortura-me - não o desconhecido que ia encontrar do outro lado, mas a beleza, o amor, a autenticidade, que iria deixar deste, por isso... não sei se vá se fique.

Como dizia a minha tia perante as minhas indecisões:
«Ai Célia, não sei se vá se fique, não sei se fique se vá. Se estou lá não estou aqui, se estou aqui não estou lá». E vou lembrar-me desta frase a vida inteira, porque até hoje não há nada que me defina melhor. Nunca cheguei a lado algum, nunca aproveitei o pedaço de terra, o banco, as estrelas sob as quais repouso, porque sempre tive sonhos de estar em outro lado. Sempre tive ímpetos de voar, sempre quis caminhar sobre ondas, sempre quis ler, decifrar, pensamentos, sempre quis coisas impossíveis. Sempre viajei entre coisas impossíveis, daí que nunca tenha alcançado porto algum seguro.


Concluindo: a minha irmã, de quatro anos, desenha casais. Entre o casal, há um cesto. Esperta é ela, que não se dá ao trabalho de desenhar o bebé no cesto; aponta e diz, simplesmente: «aquele é o filho». Eu, desde a idade dela e até hoje, sempre fiz tentativas falhadas de desenhar tudo, de definir tudo. Tal e qual a minha irmã é o Antoine de Saint-Exupèry que, perante o pedido do Principezinho de que lhe desenhasse uma ovelha, desenha uma caixa e informa que a ovelha estava lá dentro. Desconfio que o Principezinho é daqueles seres que sorve todas as gotas de felicidade do que quer que seja, daí que tenha ficado satisfeito com a obra-prima.

Eu, insatisfeita crónica, enquanto não visse um relance de uma orelha, de um chocalho, de lã, de focinho de ovelha, não acreditaria que, dentro daquela caixa, está uma ovelha.

E assim como a Cláudia se recorda de nós as duas a dançar quando ela tinha à volta de cinco anos - Nat King Cole numa sala de luz apagada, The Supremes, Bob Marley - a Ana há-de recordar-se da minha representação do Ulisses com um patinho de loiça a fazer de embarcação, o Ulisses era um boneco oferecido pelo McDonald's e a Circe, a deusa que tenta seduzi-lo e desviá-lo do seu caminho, era a Shelly - nada mais que a irmã da Barbie. É, se não pudesse ter filhos, se não puder concebê-los, posso dar-me por satisfeita: é como se fosse já mãe.

Isto só posso ser eu a tentar que o cansaço me vença ou que a bateria do computador (que arrastei comigo para a cama, e viva à tecnologia que me deu phones para poder ouvir música sem incomodar ninguém, portáteis com baterias e internet sem fios) morra, de modo a que possa esquivar-me do trabalho que tenho que entregar "amanhã".

Trabalho esse a apresentar às 14h de hoje, ou seja, daqui a 10h30 horas. E ainda tenho que encaixar o sono que me está a apanhar algures aí pelo meio...

Marafonas, here I go! Ritual, fertility!*


*Nouvelle Vague - Dance With Me

Nenhum comentário:

Postar um comentário