17 de set. de 2013

uma boca eleita entre todas.

Toco a tua boca
Com um dedo toco a beira da tua boca,
Desenho-a como se me saísse da mão
Como se, pela primeira vez, a tua boca se entreabrisse
E basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar
Faço nascer uma vez mais a boca que desejo
A boca que a minha mão elege e que desenha na tua cara
Uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade
Escolhida por mim, para desenhá-la com a minha mão na tua cara
E que, por um azar que não tento compreender,
Coincide exactamente com a tua boca que sorri debaixo da minha mão que a desenha

Olhas-me, olhas-me de perto, cada vez mais de perto, 
E então brincamos ao ciclope,
Olhamo-nos cada vez mais de perto e os nossos olhos aumentam
Procuram-se entre si, sobrepõem-se e os ciclopes olham-se
Respiram confusos, as bocas encontram-se e lutam calidamente
Mordendo-se com os lábios, apoiando apenas a língua nos dentes
Jogando nos seus cantos, onde um ar pesado vai e vem 
Com um perfume velho e um silêncio
Então as minhas mãos procuram fundir-se no teu cabelo,
Acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo
Enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou peixes
De movimentos vivos, de fragrância obscura
E se nos mordermos a dor é doce,
E se nos demoramos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego,
Essa morte instantânea é bela.
E há uma só saliva e um só sabor a fruta madura,
E eu sinto-te tremer contra mim como uma lua na água.
  
(Tradução pessoal do espanhol)

La Rayuela, Julio Cortázar