27 de ago. de 2012

quilómetro 26 da A2



A amizade é, de facto, uma coisa maravilhosa. Um pouco subvalorizada, contudo, nas artes e na vida de muitos, que vêm os amigos como uma mão estendida para certas ocasiões. Um amigo é alguém que se imiscui na nossa vida e, em alturas, toma completamente conta dela. Os amigos são espelhos onde nos vemos melhor do que noutro sítio qualquer - já diz a Samantha de "O Sexo e a Cidade". E é tantas vezes difícil vermo-nos nesses olhos que não mentem. Os meus amigos sabem bem quem são e não vão a lado nenhum, hão-de ficar por cá a vida inteira. Dão cor, sabor e alegria à minha vida. Poucos têm a capacidade de nos surpreender pelo melhor; infelizmente, costuma ser o oposto. Geralmente, a vida - pelo menos pelo que tenho experienciado - é um chorrilho de decepções e enganos. Munidos do optimismo e da ingenuidade que nos permite estabelecer alguns laços essenciais (alguns deles desfeitos pela hipocrisia e o desgosto) acabamos por criar algumas ligações inestimáveis. Antes da amizade vem uma única relação: a que temos com nós próprios, e eu sou irremediavelmente apaixonada por mim mesma. Se não soubermos lidar connosco, como poderemos esperar que os outros saibam fazê-lo? Se não tirarmos prazer de nós mesmos, se não nos entretivermos, não nos rirmos de nós próprios, como poderemos jamais entreter a outro? Por outrem a rir? Animar seja o que for na vida doutrem? Mas é também precisa uma sensibilidade acima da média, a fim de que os nossos caprichos não se sobreponham acima das suas questões essenciais, e que ceder a um capricho custe tanto quanto beber um golo de água, porque ver um amigo feliz e sabermo-nos a causa dessa alegria...

Reflectia sobre tudo isto ao quilómetro 26 da A2, sentido Almada. Tudo porque regressei à Tenência, 6 anos depois da partida. Pelo caminho fui com uma grande amiga... tão grande que as nossas vidas andam bem intrincadas desde os nossos dez, onze anos de idade. Sabemos praticamente tudo uma da outra - ainda acho que devemos salvaguardar um pouco de nós para nosso uso exclusivo, a fim de termos uma última camada, que nem os amigos penetram, a dar-nos profundidade. Ela sabe o quão é importante para mim esse recanto. Cheguei a ficar surpreendida por ter interesse em visitá-lo, por aceitar desperdiçar um dia nesse passeio, por se dispor a sermos só as duas da N125 à A2, Portugal de Oeste a Este, de Sul a Norte, por entre xistos e gado, o ouro das planícies e o verde (tantas vezes castigado por cinzas) do interior algarvio. E então estamos a chegar à Tenência, estamos a chegar e entramos na saída que a placa indica. O meu coração dispara. Passaram-se 6 anos e as memórias são agridoces... Tinha tanto imaginado esse regresso... Julguei que choraria, porque aqueles velhotes são como velhos amigos, velhos companheiros de trocas de experiências e histórias de vida. E então ela imobiliza o carro na berma. Um carro passa por nós. Ela diz: queres levar tu o carro? E eu caio das alturas do nervosismo devido à emoção de entender a mensagem. A sério? A sério, sério? É mais ou menos o que eu tinha imaginado, do alto das minhas fraquezas de humana. A simbologia deixa-me estarrecida, fascinada. A vida faz sentido de tantas formas, leva-nos ao sítio certo, no momento certo e na companhia certa... Entrelaça-se em si mesma com floreados poéticos e inesperados, liberdade, regresso, saudade. Peguei no carro e subi, atrás de outro que fazia curvas e contra curvas à minha frente. Mal eu sonhava que, quando regressasse à Tenência, iria ao volante de um carro e com uma amiga ao lado... beyond my wildest dreams. Mal sabia eu que, de todos os dias do ano, seria naquele, e com aquele outro carro à minha frente, que eu regressaria. Não é assim tão over de edge, mas são as pequenas coisas que me fazem mais feliz... Sempre assim foi, o cuidado com os pormenores, os mesmos que compõem uma história. A minha história.

É domingo, penso... é domingo e ele pode vir almoçar à mãe. É domingo e pode ser que o veja, seis anos depois...
E então de repente estou lá em cima - cheguei. O carro que me precede apeia-se à direita e imobiliza-se na berma, à entrada da aldeia. Eu abrando o meu ao passar por esse, de chapa azul-escura. Olho e está feito. As pernas tremem-me quando estaciono o carro no lugar do largo que sei que é dele. Mas ele deteve-se e eu antecipei-me.

Era ele.
Não que ainda me diga coisa alguma, mas... as pernas tremem-me quando removo a chave da ignição.

At last we meet again... six years later.

Fechou-se assim outro capítulo.
Foi tão bom virar a última página...

9 de ago. de 2012

to always love someone

A "I Will Always Love You" da W. Houston pôs-me a reflectir no significado de se amar alguém para sempre. Amar é sempre trágico. Será trágico prometermos amar alguém para sempre apenas para descobrirmos que não somos capazes. É igualmente trágico descobrirmos que somos capazes e a maldição será ainda maior. Eu já me tinha dito que a vida escreveu direito  por linhas tortas. Eu não gosto de coisas efémeras, não gosto de iogurtes com pouco prazo de validade, porque acho que não valem o tempo que se perde e o receio constante de que já esteja azedo enquanto olha para nós do frigorífico. Amar para sempre é falta de respeito para consigo próprio. Uma pessoa esperta luta por si. Uma pessoa com sorte luta por si e, na escaramuça, acaba por salvar o outro. É um doce triunfo, mas raro de alcançar. O provável é que, perante a espingarda, cada um fuja para o lado oposto do cano.

Terei mudado assim tanto? Cresci dez anos nos últimos meses. Podia ser uma das protagonistas dos meus romances, porque elas são geralmente capazes de coisas corajosas, e eu continuo sem ter conhecido alguém mais corajoso do que eu. Quem tem a força de vontade necessária para seguir uma dieta à risca? Quem tem a força de vontade para deixar de fumar de um momento para o outro, sabendo que o último cigarro que fumou nem sequer foi aproveitado como último cigarro? Quem larga o álcool com esta facilidade?

A minha droga, o meu vício, a minha doença, ficou para trás num momento de extrema lucidez que me tomou. Oh... nem todos teriam tido a coragem... mas eu tive. E mais do que isso, por muito que os seus vestígios, nos meus circuitos, me tenham causado uma forte ressaca... nem por um momento - nem por um momento - eu ousei ponderar voltar a fumar desse cigarro. Ninguém teria tido a coragem... Não. Outra/o ter-se-ia arrastado pelo chão. Teria considerado que fora cruel. Oh, como viveria sem o afecto da única pessoa que lhe interessava? Pior ainda! Como viveria sabendo que essa pessoa agora o despreza e detesta e é, inclusive, capaz dos actos mais vis para consigo? Actos que até uma criança de cinco anos teria a consciência suficiente para evitar. Um grão de humanidade que fosse - talvez a criança já tivesse amado um cão e, tendo amado um cão, não causaria mal ao cão que também o amou. Mesmo agora, que o cão já não lhe é útil. 

Apercebi-me que há uma coisa visível, palpável, colorida em torno de algumas pessoas. São almas latentes, pulsantes, um espírito livre e uma aura digna de admiração. Ele não combina com isso. Todo ele era aspereza e raiva contida. Agora ele está bem, com alguém que combina com ele. Eu era uma sonhadora, não tinha nada do cinismo necessário à vida. Tenho alma de artista - digo alma e não talento, é uma coisa da mente e não do corpo - e também isso não combina. Ele tem a sensibilidade de um bloco de xisto.

Tenho alma, pois. 
E isso faz toda a diferença.
Se, em duas pessoas que se amam, uma delas tiver alma 
[- e forem a pessoa certa um para o outro]
 - uma alma tímida nasce também no outro corpo.
Uma nova sensibilidade ao mundo... tornam-se capazes de coisas melhores.
Preocupam-se não só com eles mas com os outros.
Torcem por que o outro seja melhor, e vão sendo também eles melhores.
Se se amam, e isso é certo, fazem os possíveis para todo o resto caminhar também nesse caminho do correcto. Porquê esbofetear um mundo que lhes deu a dádiva da união? Porquê detestar ainda, porquê ansiar por fazer mal ainda? Porquê ter de vencer noutros campos menos limpos ainda? Porquê alimentar hipocrisias quando o universo lhes concedeu a verdade? O genuíno?

Num terreno sem sementes de alma não há alma que nasça, não há vida que vingue.
E isso faz toda a diferença na equação 1 + 1 - o resultado é 0.

8 de ago. de 2012

#0

E então como se esquece a mágoa
e se guarda só o que é bom de guardar?

a cada vez que esta se lembra de dar na rádio parte-se mais qualquer coisa cá dentro.

como é que as pessoas se podem enganar tanto?
acho que fui enganada.

os meus sentidos sofreram uma reviravolta de 180º.

6 de ago. de 2012

a valsa esquecida


«A regra deve ser esta; as pessoas são exageradamente óbvias antes de chegarem a vias de facto e pateticamente óbvias quando a coisa pára - mas enquanto tudo está a acontecer, quando o caso está arrumado e as pessoas agarradas a ele com unhas e dentes, tornam-se tão discretas quanto um ministro com uma conta bancárias nas Ilhas Caimão"

Anne Enright,
Obrigada pelo esclarecimento. 
Ajudou bastante.

2 de ago. de 2012

soube de cor

tenho que deixar de ouvir a Comercial para deixar de levar com a Mafalda Veiga de chofre.

esta noite acordei cheia de calor às 03:50. fitei o tecto e senti um peso já familiar. então recordei-me que me aconteceu uma coisa feia. recordei-me não porque isso me doa, mas porque fiquei assombrada com a facilidade com que consigo virar as costas a quem me magoa mais e com a facilidade com que alguém passou de dizer que me amava e me admirava para viver perfeitamente bem sem mim. somos feitos do mesmo material: um egoísmo tão enraizado que todos os outros parecem descartáveis. perdoo muito - perdoaria tudo - a alguém que soubesse que não voltaria a magoar-me. já o fiz várias vezes. inclusive, talvez ele estranhe que fale tão bem a pessoas com quem choquei a dado momento. falsidade...? não! acima de tudo, não sei fingir. decidi desculpar - o perdão não é uma coisa tão cristã? pois bem, não sou cristã. perdoo para viver melhor no mundo de que disponho. e perdoo - mas não esqueço - porque essas pessoas jamais teriam o poder de me magoar de novo. só por isso. simples, não? é por isso que o perdão está fora de questão no caso dele. não confio em mim em relação a ele. e se me esquecesse? e se, a dado momento, achasse que valia a pena sofrer mais, pior ainda, outra vez? a dor foi tal que pensei em morrer. pensei em exilar-me desta vida. não porque não houvesse mais nada capaz de fazer-me feliz, mas porque a grande fonte de felicidade sólida e genuína de que me valia - a única pessoa em cujas mãos me teria posto de olhos fechados, a única pessoa que julguei que valeria a pena dar a vida por (visto que a sua seria sempre mais útil do que a minha) -, era afinal feita de egoísmo, crueldade, imoralidade e de um desespero tão obscuro quanto o meu, por vezes, era. é um peso incómodo porque é uma mancha escura com o desenho da mesquinhez da natureza humana no meu passado. lembra-me os ardis, as falsidades, os fingimentos de que as pessoas se valem para ser amadas, e o quanto usam os outros como objectos quando correm para os seus próprios afectos. lembra-me que eu tinha jurado amar para sempre mas não pude. o meu amor sobreviveria a tudo, menos a uma descida de carácter por parte dessa pessoa que admirava tanto e que, por vezes, me enchia os olhos de lágrimas de orgulho. estou a ler o "véu pintado" e surge a questão: a Kitty Fane tem um marido médico que a ama e que está disposto a fazer tudo por ela. mas despreza-o: que lhe importa que seja digno de admiração e que seja bondoso e justo? é por um ordinareco que se apaixona. porquê? porque ele é popular, tem um futuro brilhante garantido - não porque seja inteligente, mas porque tem "charme" e as pessoas inteligentes pensam e têm ideias, logo o consulado agradece a mão de alguém que deixe tudo como está. debate-se pelo seu afecto, implora-lhe por carinho, retorno, piedade. trai o marido com ele. para quê? para vê-lo fugir assim que a relação clandestina fica demasiado complicada? só para descobrir que ele mete todos os outros pormenores da sua vida à frente dela? só para descobrir que foi só mais outra que ele usou para se divertir momentaneamente? e então, conforme começa a conhecer melhor o marido e se apercebe do valor que ele tem - e que ela desprezou porque ansiava por aventuras juvenis - diz: como se alguma vez uma mulher tivesse amado um homem pela sua virtude. digo o mesmo dos homens em relação às mulheres. importará sempre mais a gazela que pode escapar-se-lhes da flecha a qualquer momento do que a ovelha que se deixa docilmente caçar. o premiado...

enfim, quando o Walter finalmente a perdoa, é tarde demais. pobre Kitty. pobre Scarlett O'Hara.
a cegueira é uma coisa que a vida nos atira para cima para testar o nosso sentido de orientação; para ver se damos com o caminho mesmo no escuro... não, não faço troça de ninguém.
também eu fui cega durante demasiado tempo, quase um quarto da minha vida desperdiçado. também eu tive um dedo podre! quem sou eu? quem é quem para julgar os infatuados?

oh... parece que terei de viver para sempre com estas sombras a dançarem no meu átrio.