tenho que deixar de ouvir a Comercial para deixar de levar com a Mafalda Veiga de chofre.
esta noite acordei cheia de calor às 03:50. fitei o tecto e senti um peso já familiar. então recordei-me que me aconteceu uma coisa feia. recordei-me não porque isso me doa, mas porque fiquei assombrada com a facilidade com que consigo virar as costas a quem me magoa mais e com a facilidade com que alguém passou de dizer que me amava e me admirava para viver perfeitamente bem sem mim. somos feitos do mesmo material: um egoísmo tão enraizado que todos os outros parecem descartáveis. perdoo muito - perdoaria tudo - a alguém que soubesse que não voltaria a magoar-me. já o fiz várias vezes. inclusive, talvez ele estranhe que fale tão bem a pessoas com quem choquei a dado momento. falsidade...? não! acima de tudo, não sei fingir. decidi desculpar - o perdão não é uma coisa tão cristã? pois bem, não sou cristã. perdoo para viver melhor no mundo de que disponho. e perdoo - mas não esqueço - porque essas pessoas jamais teriam o poder de me magoar de novo. só por isso. simples, não? é por isso que o perdão está fora de questão no caso dele. não confio em mim em relação a ele. e se me esquecesse? e se, a dado momento, achasse que valia a pena sofrer mais, pior ainda, outra vez? a dor foi tal que pensei em morrer. pensei em exilar-me desta vida. não porque não houvesse mais nada capaz de fazer-me feliz, mas porque a grande fonte de felicidade sólida e genuína de que me valia - a única pessoa em cujas mãos me teria posto de olhos fechados, a única pessoa que julguei que valeria a pena dar a vida por (visto que a sua seria sempre mais útil do que a minha) -, era afinal feita de egoísmo, crueldade, imoralidade e de um desespero tão obscuro quanto o meu, por vezes, era. é um peso incómodo porque é uma mancha escura com o desenho da mesquinhez da natureza humana no meu passado. lembra-me os ardis, as falsidades, os fingimentos de que as pessoas se valem para ser amadas, e o quanto usam os outros como objectos quando correm para os seus próprios afectos. lembra-me que eu tinha jurado amar para sempre mas não pude. o meu amor sobreviveria a tudo, menos a uma descida de carácter por parte dessa pessoa que admirava tanto e que, por vezes, me enchia os olhos de lágrimas de orgulho. estou a ler o "véu pintado" e surge a questão: a Kitty Fane tem um marido médico que a ama e que está disposto a fazer tudo por ela. mas despreza-o: que lhe importa que seja digno de admiração e que seja bondoso e justo? é por um ordinareco que se apaixona. porquê? porque ele é popular, tem um futuro brilhante garantido - não porque seja inteligente, mas porque tem "charme" e as pessoas inteligentes pensam e têm ideias, logo o consulado agradece a mão de alguém que deixe tudo como está. debate-se pelo seu afecto, implora-lhe por carinho, retorno, piedade. trai o marido com ele. para quê? para vê-lo fugir assim que a relação clandestina fica demasiado complicada? só para descobrir que ele mete todos os outros pormenores da sua vida à frente dela? só para descobrir que foi só mais outra que ele usou para se divertir momentaneamente? e então, conforme começa a conhecer melhor o marido e se apercebe do valor que ele tem - e que ela desprezou porque ansiava por aventuras juvenis - diz: como se alguma vez uma mulher tivesse amado um homem pela sua virtude. digo o mesmo dos homens em relação às mulheres. importará sempre mais a gazela que pode escapar-se-lhes da flecha a qualquer momento do que a ovelha que se deixa docilmente caçar. o premiado...
enfim, quando o Walter finalmente a perdoa, é tarde demais. pobre Kitty. pobre Scarlett O'Hara.
a cegueira é uma coisa que a vida nos atira para cima para testar o nosso sentido de orientação; para ver se damos com o caminho mesmo no escuro... não, não faço troça de ninguém.
também eu fui cega durante demasiado tempo, quase um quarto da minha vida desperdiçado. também eu tive um dedo podre! quem sou eu? quem é quem para julgar os infatuados?
oh... parece que terei de viver para sempre com estas sombras a dançarem no meu átrio.
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