27 de abr. de 2012

porta azul - aldeia

se pudesse escolher algo que soubesse que me traria paz e conforto, pediria uma vida pacata numa aldeia. numa aldeia de chão empedrado, casas de xisto, ou granito, ou cal e faixas azuis, com portadas de madeira na janela. um sítio onde no inverno fizesse muito frio (e o vento uivasse pelas ruas estreitas à noite) e no verão fizesse muito calor (e a atmosfera crepitasse a meio da tarde). um sítio onde, ao cair da noite, pudesse pôr uma cadeira à porta e sentar-me a ver quem passa com um livro no colo, a aproveitar os últimos resquícios de luz solar. um sítio onde me cumprimentassem com acenos e bastasse. um sítio onde a roupa ondulasse no estendal, à janela do primeiro andar, e de onde visse estrelas em céus azuis profundos, como diamantes num manto de veludo negro, do parapeito da minha janela. ao longe, o contorno indistinto dos montes, como lençóis deitados sobre a rudeza da terra, sobre a insignificância dos vermes que dela se alimentam. o calor da terra a evaporar, os pés descalços depois do banho, ao sacudir a toalha à porta. a fragância da comida a ser preparada nas casas vizinhas, os trinados dos pássaros e as vozes das pessoas. a tosse das pessoas. as interjeições, os suspiros, as asneiras das pessoas. a vivência das pessoas, a meu lado mas sem me tocar. a vida a vir e a levar-me aos poucos, no abraço do tempo, a beijar-me ao de leve a pele e a cobri-la de rugas, mas o tacto não pode levar. o olfacto não pode levar. e eu quero viver esse frio com a ponta dos dedos e do nariz, esse calor com a planta dos pés e o suor das têmporas. sozinha, quero tanto ser ninguém numa terra com pouca gente. quero muito, mais do que muito... quero que o meu gira-discos seja algo de estranho para os idosos. quero ser uma amiga, um elemento mais novo - esquisito, deslocado - para todos. não faço parte deles, mas também não faço parte de onde era suposto fazer. a palma das mãos sobre a textura das paredes. as casas. as chaminés a expelirem fumo branco contra a noite profunda. meia dúzia de candeeiros de rua no perímetro completo da aldeia. crianças - poucas durante o ano - a encherem as ruas em agosto. um pouco de ingenuidade. um pouco de memória do passado. um pouco de decência. um pouco de amistosidade despretensiosa. um pouco menos de preocupações. um verão eterno - eu, que sempre lhe preferi o inverno - um verão eterno para eu me refrescar na fonte pública mais próxima. para me sujar de suor, os pés do saibro, e para me meter sob água fria de hora a hora. o sol a pôr-se e o sufoco insuportável das luzes acesas às nove da noite, quando o escuro finalmente nos embala. árvores, pássaros, flores e húmus. as curvas sinuosas dos montes, as casinhas recortadas ao longe. a bengala da vizinha, o sorriso do padeiro, o buzinar da carrinha dos gelados. o odor intenso a café, quando nos juntamos para um breve convívio - sim, porque eu tenho que voltar aos livros, aos por ler e aos por escrever. abdico assim da vida. de coração - sem tristezas, sem promessas de não voltar a querê-la, mas abdico com relativa alegria. há vida na imaginação, há dignidade na simplicididade, no pitoresco. e eu quero essa onda de benevolência sobre mim. se pudesse... é o que pediria. um chão quente para pisar, uma cadeira à sombra onde ler, um burro carregado de palha anunciado pelo eco pachorrento dos cascos. um rebanho de ovelhas com os sinos a tinir, o pastor a deslocar levemente o chapéu para me saudar. e eu sentada. a ler, a escrever, longe dali, ali, em todo o lado, com suspiros de satisfação, de gratidão, de certeza de estar no sítio certo e na vida mais rica em que me consigo imaginar. até me fartar. um recanto de silêncio e de busca por mim própria, um retiro para a alma e para o corpo. um regresso à simplicidade de outros tempos, ao trabalho manual e ao respeito. pelos outros, por si, pela natureza. à sombra... numa cadeira, a viajar pelo mundo em livros. e o sol, que glorioso sol, sobre o chapéu de palha empoleirado no meu cabelo solto. livre.

9 de abr. de 2012

os homens que fingem amar as mulheres

Hoje chegou-me um pedido curioso de uma mulher que tem, creio, o dobro da minha idade. O problema dela, contudo, podia ser meu ou de qualquer outra mulher. Os homens, que não crescem, são o motivo central. Acontece que esta mulher – que compreendo a cem por centro – está presa num ciclo vicioso. Há um homem (um amigo) com quem se preocupa demasiado. Dizem que nunca a viram tão apaixonada na vida, e afinal o amor não é coisa de adolescentes, pode surgir e pôr doente a mais amadurecida das pessoas. Está apostada em dar-lhe um empurrãozinho para o ajudar a decidir-se mas, simultaneamente, o homem em questão sofre daquela espécie de ambiguidade de que os homens se valem para manter as mulheres cativas, e doentes, em redor deles. É demasiado atencioso. É ciumento. Gravita ao redor dela. Preocupa-se com o seu bem-estar. Recusa-se a dormir no mesmo quarto que ela, numa situação invulgar que o exigiu. Dorme no sofá enquanto ela passa mal no quarto, para garantir que está por perto se ela precisar. Se eu escrevesse isto num romance, ele estaria inevitavelmente apaixonado por ela. Na vida real…? Quem vai entendê-lo? São sintomas de amizade, os ciúmes? 

Eu entendo bem demais, minha cara. Os beijos na mão. Os olhares lascivos. A boca no ouvido a dizer que a deseja (ainda que por palavras menos próprias). Se algum dia o tocar, entendo até que derreta nas mãos dele e que ele pareça derreter nas suas. Mas não pense que o vergou. Não pense que lhe tocou lá dentro… isso são homens que fingem amar as mulheres. Que as metem na gaveta. Que lhes chamam princesas e as equiparam a rainhas e as sentam no colo e jogam um jogo em que as regras oscilam de sedução aberta para um desinteresse insultuoso. São homens que dizem admirar a sua força e que lhe desejam as maiores felicidades, mas que não dão o passo de assumir o lugar de homem notável a seu lado, por muito honrosa que digam que seria essa posição. Prepare-se para danças em que o nariz dele há-de aflorar-lhe o pescoço e elogiar-lhe o perfume do cabelo. Prepare-se para ver, inequivocamente, que a quer nos olhos dele. Quando ele abrir a boca, não se espante se disser que é tudo mentira e que você é que está a atacá-lo com ardis femininos, porque ele sempre a viu como amiga, quase irmã. Há-de querê-la – quando der jeito – e de a mandar embora quando se fartar. Quando a tiver manchado e magoado e quando a tiver destruído. Se ele for dos piorzinhos, é até capaz de o fazer debaixo do seu nariz, provavelmente para testemunhar a sua queda em primeira mão. Ou para a lembrar, com eficácia, de que não é ninguém na vida dele. 

Depois, prepare-se. Vêm as perguntas às quais nunca terá resposta: porque é que ele se preocupava consigo? Porque é que lhe sorriu naquela situação específica? Porque é que disse desejá-la se garantia, igualmente, que lhe era uma amiga preciosa? Prepare-se para a disparidade de argumentos, para a irracionalidade do jogo, quando tiver todas as peças na mão. Um conselho? Desista do puzzle. Deite-o fora. Ponha-o fora de vista. Acostume-se ao facto de que a vida não faz sentido e faça figas para que, da próxima vez que se apaixonar estupidamente, para que da próxima vez que deseje estupidamente alguém, e ele lhe diga que a deseja de volta, se trate de um homem com H grande que distinga amizade de sentimentos amorosos. E que meta o que é físico no saco da segunda. E que seja suficientemente seguro de si para não a magoar mesmo que seja tentado a isso, só para ver os estragos que ainda é capaz de causar. Simultaneamente, fiquei assombrada por descobrir que, aos 40 e tal, os homens ainda se prestam a estes jogos de avanços e recuos. Metam a cabeça no lugar. Se é a mulher forte, inteligente e corajosa que dizem que é, meta-o a ele na gaveta. Siga em frente. Pegue fogo ao quarto onde o deixou na cómoda.

Atenciosamente,

Da mulher que odeia os homens.