30 de nov. de 2010

29 de nov. de 2010

nomes

há um antes e um depois e eu ainda não me tinha apercebido disso:

desculpa, a verdade é que, se algum dia tiver filhos, vou querer que te sentes a discutir o nome deles. pode ser até que cheguemos a acordo... mas...

mariana não.
nem joana...

é isso, pronto. espera:

nem os outros nomes todos da linha desses: joão, pedro, paulo, miguel, luís, francisco, tomás, carolina, catarina, ana.

pronto, acho que é só... espera, risca mais estes, d'outro nível:

lourenço, constança, henrique, martim, matilde, madalena e margarida, alice, clara.

pronto. acho que... espera, falta os que embirro por outros motivos:

jessica, erica, ivo, igor, hélder, gualter, orlando, leandro/a.

risca também os típicos segundos nomes, por favor:

alexandra, raquel, sofia, filipa, filipe, alexandre.

e pronto, agora sim, acho que é só.

tira esses, por favor. todos os outros discutiremos a seu tempo.

(não queiras augusto)
(nem nomes que não gosto ainda por outros motivos, ou porque me cruzei com as pessoas erradas com esses nomes na vida: cátia, liliana, carla, vera, tânia, rita, marta, sandra).

pronto e agora calo-me. são esses que não gosto.

é isso.

(não metas antónio nem tiago, por favor, também não gosto).
e acho que é tudo. ui, ainda não:

não gosto de jorge, nem josé, nem andré, nem hugo. ricardo é discutível.

agora sim, calo-me. tens os restantes disponíveis para discussão.

PS - carlos, odeio carlos.

nem quero sérgio nem marco.
nem bernardo.

PS de 6 de Dezembro - não lhe queiras chamar Rúben por favor.

28 de nov. de 2010

recordação

eu bem sei que estás para trás, mas às vezes lembro-me de ti e hei de lembrar-me sempre. o sentimento morreu, mas isso não é de ontem é de há muito atrás, mas ainda me lembro como era gostar de ti - ainda me lembro porque é que gostava de ti. e hoje lembrei-me disso, foi como um flash à minha frente, na auto-estrada. havia um gato morto, na berma, e eu vi-o, numa posição vulnerável, ainda assim, delicada, quase serena. não estava destruído como muitos dos animais que acabam sob as rodas dos veículos. parecia que dormia, excepto que não se movia. tapei os olhos para não o ver, mas a minha reacção foi involuntária. no momento seguinte percebi que a vanessa sofre por ver gatos mortos na estrada, e quando ela perguntou o que tinha acontecido, não lho repeti. escusava de perturbá-la, ainda que momentaneamente. mas lembrei-me de ti porque, numa noite de setembro, tu tinhas um gatinho pequeno para dar lá no pátio da tua casa, sob um balde: era arisco, fugia, arranhava, era rápido como uma flecha. lembro-me de estar no teu café e de ouvir uma grande algazarra: eras tu a persegui-lo, a tentar apanhá-lo. depois, com ele em mãos, a esgatanhar a tua pele, decidiste ir levá-lo à pessoa a quem o prometeste. isto imagino eu, porque não vi. explicaram-mo enquanto tinha os olhos fixos no teu carro a descrever uma curva perfeita no largo da aldeia, antes de voltares a dirigir-te na nossa direcção, virares ligeiramente à direita e continuares pela estrada que levava a odeleite para ir entregar o gato. lembro-me dum aperto no peito: era fácil imaginar o futuro contigo, enternecias-me. eu ia decidir tudo, tu ias por em prática os meus planos - de pintar a sala, de adquirir um novo carro, de chamar o que eu quisesse aos nossos filhos, e ias querer tantos quanto eu, só por causa dessa tua característica - amas animais, amas crianças, amas cozinhar. agora... eu preciso de alguém que me desafie, não o sabia na altura, sei-o agora. é por isso que não te amei, e entendo-o agora. gostar é gostar, amar não tem comparação no dicionário de língua alguma. eu não quero - e isto surpreende-me - tomar decisões e vê-las acatadas. tenho tendência ao autoritarismo e preciso de alguém que traga ao de cima o meu lado humilde, reflexivo, tolerante e cooperativo. é por isso que o meu coração adoçou quando te vi, com o rosto tenso dentro do carro, a desaparecer na noite porque dizias que o gato estava nervoso e que devia ser imediatamente entregue ao futuro dono. e quando a tua família saiu para um jantar e, os teus pais, que vinham no carro da frente, tiveram que esconder o corpo da tua gata que tinha sido atropelada na recta para a aldeia? na altura pensei que era imensa e admirável a humanidade em ti, o facto de a tua mãe saber que, aos 25 anos, te incomodava tanto o sofrimento dos teus animais que tinha que esconder o corpo da gata e esperar por uma boa altura para to contar. é isso, fiquei fascinada pela humanidade em ti. se te amei? não, amei fragmentos do futuro contigo que um dia me sentei a imaginar. isto não é nada demais, tratando-se de mim. sempre vivi com um braço na realidade e os restantes membros no mundo da imaginação, onde sou realmente feliz. o facto de ter imaginado um futuro contigo não significa que te amasse. e também sempre fui assim: sempre gostei dos pequenos gestos, rejeito o exibicionismo, uma pessoa deve ser grande nas pequenas coisas e tu eras. eras maior quando entravas descalço no café do que quando a tua mãe anunciava a tua última promoção. eras maior no teu armazém, em frente à minha casa, a pisar uvas para fazer vinho do que quando chegaste à aldeia no teu carro novo. eras melhor quando te sentaste a meu lado, eu a chorar porque o meu cão tinha sido dado, do que quando saías de manhã, de fato completo, para o trabalho. sempre admirei as pessoas por esse lado, e tu tinha-lo em demasia. de certeza que neste momento estás mais do que feliz com a mulher que escolheste. ainda não o disse mas estou feliz que tenhas encontrado outra pessoa: não estava mesmo escrito nas estrelas que devessemos ficar juntos, e eu reconhecia algum talento no romance que se desenhava sob os nossos pés, mas sempre ambicionei outro diferente para mim, mais complicado. outro em que eu amasse, amasse, amasse, até ao âmago da alma, outro em que outras pequenas coisas me adoçassem o coração, outro em que ambos trabalhássemos para nos construir mutuamente. isto, se o universo me tiver reservado algum romance. talvez eu esteja somente fadada a escrevê-los... se assim for, espero que todos à minha volta estejam felizes no amor para me darem bastante inspiração.

Coldplay - See you soon

27 de nov. de 2010

untitled

I would not only leave the country,
I'd leave the planet,
I'd leave this world.

I just couldn't take it once more.

26 de nov. de 2010

cabana sem amor

que escolha tenho eu? da última vez que me sentei sob um céu de estrelas, desejei que as coisas melhorassem em sentidos específicos. abriram-se janelas, mas fecharam-se inúmeras portas. hoje, enquanto seguia no comboio, dei comigo uma vez mais apática. estou a chegar à recta final, não é o final do curso (se chegar lá) que me assusta, não é ao curso que quero voltar. quero, no entanto, ter um plano bem traçado para o meu futuro. não posso arriscar-me a tomar a decisão errada num momento delicado destes - a minha vida já não me pertence só a mim, a perda é a perda, a despedida implica a distância e a perda, ou a ida sem volta implica a cisão completa. o plano que adoptar hoje, ao partir de viagem, pode alterar-se. o amor, como estrela cadente a guiar o meu caminho, como força vigente na minha vida, pode não ser o caminho certo, e a ambição, ou a simples realidade, podem vir e reclamar-me para si. nunca ambicionei palácios para morar ou carros topo de gama para conduzir, ou um homem alto - escritor, artista, médico - para exibir. ao invés, sempre desejei uma casinha confortável, com paredes pintadas por mim, um gira-discos, estantes de livros e lava-loiças, porque até em lavar um prato à mão há uma certa poesia, uma certa marca de solidão, a da pessoa que se entrega às lides domésticas. sempre desejei um carro velho, cheio de manhas, que me conhecesse e que eu conhecesse e que me fizesse rir - os bancos meio tortos, as portas meio perras, a direcção meio desajustada - porque nada disso me definiria, e eu seria feliz porque só isso seria um teste à perspicácia das pessoas que me conhecessem: quem me julgaria pela falta de máquina de lavar loiça, quem me julgaria pelo carro de inícios da década de 90? se me julgassem, eu saberia com quem estaria a lidar à partida - quem não julgasse, daria um passo para mais perto de mim. quanto ao homem, o que sempre imaginei seria alguém de quem eu me pudesse orgulhar - acima de tudo, orgulho, admiração, respeito - todo o resto é ornamental, ainda que os restantes não compreendessem que admiração era essa minha por ele, eu saberia e isso bastaria e bastará sempre. o país que eu sonho não existe. o carro que eu quero já não é fabricado. o homem que eu quero não me quer. e, com lisboa a passar por mim fora da janela, perguntei-me se é isto o melhor que o meu país tem a oferecer. será que tenho mesmo que me ir embora? aliás, o que concluí, foi que aqui não há nada. não irei embora em busca das luzes de paris ou da cultura francesa ou do bem que soa por-se na página do facebook: cidade - paris. se for, e hoje procurei, procurei, procurei, e não vi outra saída, é porque portugal é uma cabaninha pequenina - sim, é verdade, com uma sala de jantar com vista para o mar - mas é uma cabaninha pequenina em que as crianças, o futuro, não tem muito por onde crescer. estou a ver a minha licenciatura a aproximar-se do fim, descobri que não posso ser o que queria ser ontem - agora tenho responsabilidades, não posso ficar semanas fora a passear estrangeiros por portugal - e há a sombra da possibilidade de não conseguir passar no exame final perante o turismo de portugal para ser guia. não sei se teria estofo para passá-lo, e menos ainda se teria estofo para lidar com o meu falhanço se não passasse. e depois, que faço? vou sentar-me numa agência de viagens, ganhar 800€ por mês quando tinha contado com 1000 por semana e juntar dinheiro até aos trinta anos para ter o meu chão, o meu tecto, o meu gira-discos? às vezes apetece-me gritar-lhe: devias sentar-te aqui a planear o futuro comigo. depois lembro-me que não temos futuro juntos, que estou sozinha, que os meus amigos, e que bem os amo, precisam de começar a trabalhar na obra que serão os seus próprios futuros e que uma pessoa - ou bem que tem outra a seu lado que é inseparável e para sempre - ou tem que fazer por se bastar a si sozinha. é como se eu já estivesse com um pé no meu ideal do "amor e uma cabana", só que o amor está ausente e eu estou cansada de o esperar dentro da cabana suja, fria, com vista para um mar que só me traz melancolia, tristeza, saudade e frustrações. de que adianta ficar eternamente sentada num banco, à janela desta cabana, à espera que os meus desejos ganhem forma? que as mãos dele venham ter com as minhas? que me diga: há um plano c, que é este e é nosso e vai funcionar porque eu acredito, eu vou lutar, tu acreditas e tu também vais lutar por ele? e há o tempo a escorrer entre os meus dedos, em uma semana somo um ano aos vinte. se for para paris, em dois ou três anos sob o tecto da minha avó, sem despesas, junto o suficiente para dar uma boa entrada no meu tecto, aperfeiçoo o francês, traço um novo plano de vida, tiro um curso qualquer - quem sabe um mestrado se acabar realmente a faculdade - e volto não para a casa de partida, não para a casa 0, mas para a 2 ou a 3. e aí quem sabe, o meu futuro pudesse ser melhor. o futuro dos meus irmãos pudesse ser melhor. o nosso futuro, a existir um dia, pudesse ser melhor.

mas eu bem sei que a saudade iria matar-me aos poucos. ou irá. eu bem sei que a internet não dá abraços, nem reproduz bem vozes, bem sorrisos, nem covas no rosto, nem denuncia, se a pessoa o quiser esconder,  o estado de espírito do outro. também não equivale a estar-se presente num aniversário, num momento difícil, num evento importante. não sei que face deva dar, em que parte de mim devo deixar a pedra cair. na parte que ama, e sofre, ou na parte que está disposta a lutar por uma vida melhor, e que, em grande parte, está certa. a verdade, é que eu desejava que também isto fossem dramas, filmes, paranóias minhas. a verdade, é que em breve terei que tomar uma decisão, e vou descobrir se sou uma romântica ou se o meu coração é mesmo de pedra, como também há quem diga, e é capaz de arriscar tanto pelo melhor que a sociedade consagrou. arriscar tanto, não. arriscar tudo, suspeito.

25 de nov. de 2010

you never know how slow the moments go



So beautiful, so true.

The very thought of you
And I forget to do
Those little ordinary things
That everyone ought to do
I’m living in a kind of daydream
I’m happy as a queen
And foolish thought it may seem
To me that’s everything

The mere idea of you
The longing here for you
You never know how slow
The moments go
Till I’m near to you

I see your face in every flower
Your eyes in stars above
It’s just the thought of you,
The very thought of you, my love

23 de nov. de 2010

quem preferiria ficar fechado na gaiola a ver os outros pássaros voar?

o amor, como avalanche, como inundação, como sismo ou maremoto ou tufão... invade tudo, apropria-se de tudo, não tem limites, os contornos do silêncio são ténues, perde-se em voz, anseia por comunicar, por fazer-se saber. haveria amor tão belo assim, no silêncio, ou talvez na ignorância? haverá amor assim? solitário, perspicaz, observador, contido? não, tal coisa não existe. porque é que, em tanto tempo, ainda não aprendi? tal coisa não existe, repito. eu sei, tu sabes, sabemos todos. mas é o facto de saber que dava a minha vida por quem amo que me tolda o raciocínio, não posso querer que seja melhor do ninguém, que ame melhor do que os outros, por isso, não posso ser a única a dar a minha vida, como se fosse a minha vez numa fila de espera, por quem amo. não posso ser a única que mataria por quem amo. que caminharia, de pés descalços, no deserto, por quem amo. que mergulhava nas águas do ártico para trazer ao de cima quem amo, não posso ser a única, nem quero. o amor, como força incontrolável, derruba tudo, agora dizem-me que se pode controlar o amor? será possível? mas isso não seria um estádio de controlo do mais avançado que há, alguém conter-se ao ponto de não estender a mão para quem ama, de não lhe acariciar o rosto, não lhe tomar a mão, não o beijar, não... tudo o resto? e o que fica do amor jovial, do amor entusiasmado, do amor temerário e inconsequente neste quadro racional do amor? seria uma relação eterna, sem os altos e baixos dos impulsos? existirá alguém assim tão racional? e, existindo, este será o tipo de amor mais estranho que já vi ou... simplesmente... o mais admirável?

self professed... profond

For you I was a flame
Love is a losing game
Five story fire as you came
Love is a losing game

Why do I wish I never played
Oh, what a mess we made
And now the final frame
Love is a losing game

Played out by the band
Love is a losing hand
More than I could stand
Love is a losing hand

Self professed... profound
Till the chips were down
...know you're a gambling man
Love is a losing hand

Though I'm rather blind
Love is a fate resigned
Memories mar my mind
Love is a fate resigned

Over futile odds
And laughed at by the gods
And now the final frame
Love is a losing game

never ending force. I'm still speechless.

21 de nov. de 2010

the promise

What happened to us?
When did the world hit us?
When did we forget the basics of being?
When did we start to chose prudency over love?
When did we turned to other side of the road?
What happened to us?
How did all those promising flowers became dead leaves?
How did all that positive energy fell into a crisis?
How did all that beauty fade away?
How did all those moments flew away?
How did all that love got lost?
How did we let it happen?
What happened to us?
Was it life, knocking at our doors?
Was it wisdom, maturity?
Was it selfishness?
What happened to all that joy?
What happened to all that youth, all that blind faith?
Why did we have to grow up,
What did it have to be so different from what we were told?
Why do things diverge from what it was taught?




Two roads diverge on a wood and I...

I'll try to choose the one less likely to dry.

19 de nov. de 2010

dois restos de pessoa

o mar beijado pela luz dourada do sol de final de tarde - não a luz moribunda de quando o sol já toca a linha do oceano, mas a luz envolvente que precede esse momento. imaginem duas pessoas, um homem e uma mulher. não, tirem isso da cabeça - não andam de mãos dadas, inventaram qualquer coisa nova ao invés. não há mãos dadas nem o sol a tocar a linha do horizonte. imaginem que estão ambos descalços - é isso que partilham, os pés nus sobre o mesmo chão - isso e toda uma visão de vida. imaginem que ocasionalmente os seus ombros se tocam, ambos sorriem, ela de modo sonoro, ele discretamente. imaginem que por um fragmento de minuto, os seus indicadores se entrelaçam, apenas para se soltarem no momento seguinte - foi um afloramento, não há mãos dadas aqui. ela pula por entre as ondas, ele observa da areia. ela abre os braços - tem ilusões de poder voar - ele mantém os seus cruzados. imaginem que os pés dela raramente tocam o chão - ela flutua, saltita, quase levanta voo sobre a espuma das ondas - ele tem os pés firmemente enterrados na areia. imaginem que os lábios dela mal se tocam, pois ela exibe um sorriso constante, em contrapartida, raramente os lábios dele se apartam para sorrir, ele limita-se à subtileza de um curvar dos cantos da boca (no entanto, há luz nos seus olhos). imaginem que ambos já viveram muitas vidas, que esta é apenas outra, que a eternidade é um caminho a percorrer. agora esqueçam a praia, ou melhor, somem-lhe o regresso a casa: ele segue ao volante, ainda sério, ocasionalmente faz um comentário inteligente. não, não estão em acordo quanto à estação em que o rádio vai sintonizado. ela aborrece-se das notícias, tanta realidade a inundá-los através da voz do interluctor, prime o botão do rádio e percorre algumas das suas estações favoritas, depois diz "é isto mesmo", e recolhe as mãos no colo. depois é a vez dele fazer o mesmo, e da rádio ouve-se a voz do interluctor, bem colocada - "...contas públicas de 2011 para 3% do PIB nacional...". ela esboça um sorriso, mais discreto, não quer ser efusiva, a vida pulsa-lhe em cada centímetro de pele e tem que a reter em si, tem que evitar levantar voo a cada êxtase, cair por terra a cada desilusão. é só uma música, diz-se: para quê pular, abanar os pés, bater palmas? é um pequeno triunfo que dura poucos instantes - ele sabe que ela não espera outra coisa, que não que ele volte a mudar o rádio: na realidade, ela ama-o precisamente por cerrar as sobrancelhas enquanto ouve notícias sobre o orçamento de estado, e ele sabe que a ama precisamente porque luta afincadamente por se despir de todas as âncoras e de todos os cinzentos da realidade. assim continuram, amando-se ao mudar a estação de rádio, querendo ser si próprios mas, simultaneamente, sabendo que o outro não sabe ser sem si - como seria ele o homem sisudo a assistir atentamente ao desenrolar dos acontecimentos se ela não estivesse lá a testemunhá-lo? a guardá-lo na memória, a rescrevê-lo mais tarde, a recordá-lo? e seria ela uma eterna criança se ele não fosse o palco onde ela podia, finalmente, representar quem era? ele era como um leitor, o único espectador, de uma peça de teatro que era ela, de um quadro solitário num museu isolado e raramente visitado. imaginem o chegar a casa: ela ia dizer-lhe que queria um cão. ele ia dizer que ela já sabia que ele odiava cães. ela ia dizer que ele tinha que compreender o quão era importante para ela ter um cão. ele diria: "compreendo isso, mas também tens que compreender que eu não quero cães, não gosto de cães". e ela ia insistir, não que quisesse realmente um cão, na realidade até os achava trabalhosos, é só que queria descobrir se ele faria isso por ela: se conviveria com um cão por ela, se o faria para vê-la feliz. e ele, da sua parte, não podia ceder igualmente: era uma questão facilmente aplicável a problemas maiores - ela desistiria da sua ideia se a sua concretização implicasse a sua desaprovação? tinham que saber, ambos tinham que saber um do outro - ela acabaria por dizer que, na realidade, não queria cão algum, mas que já tinha comprado um piriquito sem lhe pedir autorização. haviam de rir, não que fosse digno de ficar registado em nenhum telejornal, reality show, telenovela ou romance de bolso. mas iam rir, tantas vezes, demasiadas vezes. às vezes ia parecer que a vida era leve demais, depois, descobriam uma ruga na testa do outro em momentos improváveis: "em que é que estás a pensar?" - "não viste o rapazinho descalço à porta do armazém?" "não, o que tem?", "nada, pus-me a pensar nas circunstâncias da vida, só isso". e ele ia ficar em silêncio: compreendia-a, sabia que as suas observações seriam um mero eco dos pensamentos dela, preferia o silêncio à condescendência quando esta implicava gastos de energia desnecessários - ele também sabia, que ela sabia, que ele sabia exactamente o que estava a pensar. num par - num grupo, numa expedição - cada um deve ocupar-se daquilo que sabe melhor: ele ocupava-se da realidade, ela do campo dos sentimentos. haveria sempre discussão ao domingo de manhã sobre quem detinha o monopólio do comando da aparelhagem. "chega de notícias de corococó", diria ela. ele diria "chega também dessa lamechice de músicas" - e, com a passagem do tempo, tanto as notícias de corococó como as músicas lamechas se diluiriam em ruído de fundo que tinha o efeito de fazer o outro feliz. agora imaginem que ele sempre quis morar no último andar de um prédio, com um terraço com vista sobre a urbe - imaginem que ela sempre quis um rés-do-chão com um quintal, onde pudesse plantar flores e descarregar nelas o que restava do amor que circulava nela e que não tinha escoamento possível d'outro modo. imaginem que moravam num terceiro andar de um prédio de sete, numa das colinas da cidade, e que tinham três vasos na varanda. imaginem que haveria um meio termo para tudo. imaginem só que era possível... 
imaginem duas pessoas sentadas lado a lado em cadeiras, num alpendre, ao cair da noite. imaginem que é uma daquelas noites ruidosas, em que os grilos formam uma orquestra e fazem serenatas à lua. imaginem que a lua é a protagonista de um céu azul profundo - imaginem que essas duas pessoas estão convictas que o amor que sentem pela outra é suficiente para abraçar dezenas de vezes a via láctea. imaginem que as estrelas cintilam como brilhantes sobre a protecção do alpendre, vêm-no através das vigas de carvalho. imaginem que têm uma velha laranjeira num pátio de gravilha que se sê do seu banco, no alpendre. imaginem que, depois de uma vida sem apreciar mãos dadas, têm frio nos dedos, as articulações já não são o que eram, as costas das mãos estão manchadas por sardas e manchas liláses e violáceas. imaginem que as canecas de chá deixaram de fumegar. imaginem que estas pessoas aquecem as mãos uma na outra, sem as dar realmente, que os seus olhares estão fixos no céu dessa noite de outono e que já perderam muitos daqueles com quem partilharam a vida. imaginem que os seus filhos cruzam os céus em aviões e telefonam ao fim-de-semana. imaginem que ela acabou de ouvir as notícias na rádio, sabe que vai chover amanhã. imaginem que ele se emocionou silenciosamente com a canção de louis armstrong que acabou de tocar. imaginem que, lá para o final, ela começou a cruzar os braços, como escudo, perante os males que a inundavam através da rádio - deixava-os vir até si, começou a interessar-se por eles, mas cruzava os braços para impedi-los de a perturbar demais. imaginem que ele começou a abrir os seus, sentia vertigens e agarrava-se à terra, às plantas da horta e do jardim que cultivavam, à laranjeira que plantara. imaginem que ela começou a olhar para as coisas em tom de contemplação, apreciava passear sobre pontes e distinguir peixes de tamanho invulgar a deslocar-se submersos, apreciava o seu sótão e a visão do quintal que tinha dali. e, por fim, imaginem que os grilos continuam a cantar, ambos têm um xaile sobre os ombros, na realidade, o mesmo xaile abraça-os a ambos. e depois, vindo lá de cima, como um manto de neblina, vem outro braço abraçá-los. não, não é deus, aqui não é deus. é o universo a por os olhos neles, o destino a vir recrutá-los. imaginem que é como um pequeno arrepio, uma picada de agulha, e que não chegam a olhar-se uma última vez (nem haveria necessidade disso, ambos têm uma ideia aproximada do número de rugas no rosto do outro). depois, imaginem que apoiam as cabeças na do outro, que os olhos ficam pesados e uma sensação de paz, de absoluta necessidade de descanso, vem e os toma desprevenidos. a consciência desliga-se em três segundos, uma sonolência sem explicação arrasta-os para algo desconhecido, mas sugestivamente confortável. e ficam-se assim, imaginem que acabaram ali. entre os restos de um dia - as chávenas, os xailes, a laranjeira por regar, a loiça na pia da cozinha, a água a aquecer ao lume para encher o saco térmico. o gato (nunca chegaram a acordo quanto ao cão) trancado com eles no exterior da casa. ficam assim, imaginem, nos restos dum dia, dois restos de pessoa.

16 de nov. de 2010

silêncio

Fujo, mas para onde? Pus-me a sonhar com uma casinha, pequena, velha e reconfortante, sem Internet e, quem sabe, com vista para o mar. Preciso dessa casinha. Imagino-me a escrever no seu interior, no lusco-fusco, no meu computador portátil. Finalmente apliquei o romantismo de escrever cartas, confissões, à tecnologia. Agora vejo cinzeiros ao lado de portáteis e canecas de chocolate quente ao lado dos escritores bloqueados ou em êxtase de criatividade. Provavelmente, ia alimentar-me de iogurtes, cereais e do chocolate quente - quanto menos loiça melhor, sou um animal de trazer pelo sofá. Sobretudo, ia alimentar-me das horas mortas, da inércia, do silêncio, do sofá e da paz absoluta e soberana. Há tantas respostas que me são vitais, agora... quem sabe trabalhasse, quem sabe conseguisse voltar a imprimir alguma qualidade aos meus trabalhos, agora que mergulhei perigosamente na mediocridade. Não, hoje não penso em morte como alívio ou solução mas, ainda assim, não resisto a perguntar-me: e se eu morresse hoje? E se eu escorregasse, nessa casinha à beira mar, devagar, inconscientemente, para essa tal paz absoluta, e se fosse como um braço a cingir-me, e se fosse como adormecer? Quem sentiria a minha falta? Quem se recordaria das minhas teimas, dos meus ideais, das minhas intolerâncias, dos meus parênteses e das minhas legendas? Teria a minha vida marcado a de alguém? Quem manteria em mente, e por quanto tempo, a fórmula exacta das minhas reacções? Quem me reconhecia nas minhas linhas e, sobretudo, quem me leria?
É isso, as aulas de História de Arte são ruído de fundo, um espectáculo de balbúrdia contida, subtil, mas gritante. Quase flutuo do meu lugar junto à janela, enquanto escrevo. Não estou aqui, não tenho estado por cá, não tenho estado em lado algum ultimamente que não na minha escrita. É isso, é lá que moro agora, a minha alma relocalizou-se e a correspondência está a custar a chegar-lhe do exterior. A minha alma suspira para que o meu corpo vá juntar-se-lhe, para que todas as minhas horas sejam silêncio, música e escrita. Geralmente, quando vivo mais, quando a vida, como onda, me toca mais, me enrola, vem desfazer-se em espuma a meus pés, escrevo mais. Antigamente, durante quatro anos, aquilo que chamei de "período fértil" durava de finais de Agosto a meados de Março. Não sei o que sucedeu este ano que só agora, a meio do Outono, acordei da minha hibernação de verão. Agora, acordei e quero escrever, escrever, escrever, todo o resto desvanece na névoa do ruído de fundo, como se o silêncio se fizesse só para mim.




hoje

fim de tarefa

Terminada a inserção dos textos do facebook, fiquei chocada com a quantidade deles no espaço de apenas um ano e, sobretudo, com o facto de reproduzirem fielmente não só os meus pensamentos, mas tudo aquilo que parte de mim dirigido às pessoas que amo. Se eu me calasse agora, as minhas irmãs, os meus amigos, já saberiam muito de mim. Talvez até o suficiente, e ficariam com belos retratos de si próprios pintados a tinta virtual.

aniversário da avó

há dois minutos atrás:

Cláudia: Célia, dia 26 calha a quê?
Eu: Ora bem... a avó faz anos dia 26, por isso é uma sexta.
Cláudia: Ai (deita as mãos à testa) tinha prometido a mim mesma que não me esquecia disso!
Eu: Já te esqueceste.
Cláudia: O que é que lhe havemos de dar? Já sei! Porque não uma placa? Mas é capaz de ser caro...
Rio e volto-me para a Ana: Estás a ouvir isto, Ana?
Ana: Estou, e já sei! Porque é que não lhe damos uns dentes que se pareçam com uma placa?
Eu: E porque não uma placa que se pareça com dentes?
Ana: É que se fossem dentes depois tínhamos que por cola na boca...

Ou seja: ela está preocupada com a durabilidade dos dentes que pretende oferecer à avó. O melhor é fazerem um desenho... meus amores.


há cinco horas atrás

insanidade total - dr. phil e os adolescentes

Há uns dias, a assistir pela primeira vez ao "Dr. Phil" (sim, que decadência), vi alguns dos comportamentos e reflexões dos pais sobre os filhos que mais me chocaram até hoje - e eu vou a reuniões de pais na Anselmo de Andrade!

Ora bem, o programa tinha o tema central "Risky teen behavior", e depois tínhamos coisas impensáveis como o "Jogo da Asfixia", no qual eles passam um braço pelo pescoço de outro e pressionam, para que ele desmaie e experimente as "maravilhas" de não ter o cérebro oxigenado, outro que, juntamente com os amigos, ia para parques temáticos com frequência, andava na montanha russa e aproveitava-se da força G gerada pela velocidade para conseguir desmaiar e diz que sentia uma espécie de "êxtase" ao despertar no final do passeio - diz que chegava a desmaiar 15 vezes por ida ao parque e que a mãe, ao repreendê-lo, não sabia o que estava a fazer. Depois havia outro, um rapaz de dezasseis anos que chumbou pela terceira vez o mesmo ano e a mãe, preocupada, resolveu escrever para o Dr. Phil: como professora de inglês no secundário, perguntava-se se o consumo que o filho faz de uma nova droga alucinogénica chamada "sávia", que alegamente mete as paredes a derreter e bichinhos a vir do tecto e a aterrar na sala, seria a causa do seu insucesso escolar. Ao longo do programa confessa que ela também fuma, ela é que o introduziu nisso, quer ser amiga dele, mais do que mãe, ela é que, inclusive, lhe vai comprar a droga, que o filho fuma como se fossem cigarros. Diz que não se sabe o suficiente da droga para ser perigosa e para proibir o filho, mas... será que está a afectar-lhe o cérebro em desenvolvimento? Por último, o Dr. Phil recebeu uns quantos e-mails de umas mães cujas filhas (entre 12 e 17 anos) praticam qualquer coisa agora apelidada de sexting, ou seja, enviam fotografias de si próprias nuas e em poses provocantes a amigos ou desconhecidos via telemóvel.


O choque, para mim, não foi nada do que está para trás, nem sequer a mãe que introduziu o filho na sávia e não sabia se era perigoso ou não, apesar de todas as recriminações do Dr. Phil, e da visível descrença do perigo no rosto dela. O choque foi o papel de TODOS os pais nestes comportamentos doentios dos filhos. Esta professora de inglês ia comprar a droga ao filho, dizia que tinha medo que ele fosse sozinho. Coloca-se a questão se sem comprador e sem dinheiro o filho estaria a chumbar pela terceira vez o mesmo ano escolar. A droga é tão forte que, em vídeos do youtube, se vê pessoas a dar uma primeira passa e a cairem para trás, ou completamente perdidas da noção de realidade.

Depois temos o filho que se faz desmaiar no parque temático, que diz com toda a arrogância que vai continuar e que a falta de oxigenação do seu cérebro, durante 5 ou 6 segundos, não terá consequências graves. A mãe, nervosamente, acaba por dizer ao Dr. Phil que não sabe o que fazer, e o médico pergunta-lhe: «deixe de lhe dar dinheiro para o parque temático!» ao que ela diz «mas eu não lhe dou dinheiro, ele vai comigo! o que é que eu hei de fazer com um rapaz da idade dele no Domingo à tarde?». Ao que, após o queixo do Dr. Phil cair, segue-se um debate sobre o facto de ser ELA a causa que possibilita que o filho pratique aquele comportamento impensável, o próprio médico diz: «então ele diz-lhe mesmo que, indo lá, continuará a praticar o mesmo comportamento, e a senhora dá-se ao trabalho de o proibir só para no Domingo a seguir o levar lá novamente consciente do que vai acontecer?».

Por último, e talvez o pior, foi uma mãe que ligou para lá em directo e que dizia:
«Descobri que a minha filha de 12 anos anda a enviar mensagens com fotografias dela nua a rapazes... não gostei nada daquele comportamento, e queria saber se o Dr. Phil acha que isto terá consequências para o futuro dela...?»
O Dr. Phil responde-lhe:
«Em primeiro lugar: quem é a mãe? Telemóveis, computadores e outras coisas afins não são bens de necessidade, são bens de conforto, são privilégios que, quando eles não cumprem com o que lhes é pedido, devem ser retirados. Depois, é evidente que esse comportamento terá consequências para o futuro dela: o que fica no cyberspace não desaparece assim, um dia ela pode estar à procura de emprego e essas fotografias aparecem por ter sido postadas na web, por exemplo. Agora, só lhe cabe a si tirar-lhe o telemóvel!»

Sinceramente, não acredito que nenhuma daquelas mães tenha corrigido o SEU comportamento, daí que o programa tenha sido uma fantochada de mães preocupadas que, na realidade, só queriam aprovação para deixar os filhos andar sem pesos na consciência. A coisa foi de tal proporção ridícula, que eu quis adoptar aqueles três adolescentes pirados para lhos devolver daí a um mês, com a mente já sã. Onde é que já se viu!!!! Uma miúda de 12 anos a enviar fotos nuas e a preocupação da mãe é se terá consequências para o futuro! Se fosse minha filha, além de só voltar a ter telemóvel aos 18, caiam-lhe uns quantos dentes durante o diálogo. Uma coisa é certa: da próxima vez pensava dez vezes antes de se despir.

PS - Ainda há aquela rapariga que envia 14 084 sms/DIA e o pai considera que é óptimo que a filha comunique, e que tenha tantos amigos. Estúpida é a mãe, que acha que aquilo é motivo para preocupação.

14 Novembro 2010

seize the day

 «É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.»

A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset, José


14 Novembro 2010

quilómetro 10

lamento que, para mim, a estrada vá bem mais avançada do que para ti, do que para vocês. lamento que ainda tenham que a percorrer, que evitar os obstáculos e que crescer. mas eu estou cá agora, vou tentar apontar-vos o caminho e, a cada vez que ele coincida com o que fiz, vou indicar-vos as poças, os precipícios, os sapos. lamento que só vão no quilómetro 10 d'uma auto-estrada cujo fim, é um último instante de ar.

13 Novembro 2010

nem deus, nem sal

não me resta grande coisa, apercebo-me. estou a morrer por dentro, é a verdade absoluta. resta-me o sal, resta-me lamentar. lamento sinceramente que estejamos todos a sofrer horrores em silêncio, e que todos o saibamos, e tenhamos até perdido a força de nos ajudar uns aos outros. nunca nos ajudámos uns aos outros, na realidade, só nos temos afundado, só nos temos empurrado para baixo. é noite, onde há uma praia suficientemente longa e longuínqua que abafe os meus gritos, que os impeça de chegarem ao outro lado do oceano? porque é que toda a gente à minha volta está a cair? porque é que toda a gente desistiu ao mesmo tempo? porque é que toda a gente enlouqueceu ao mesmo tempo? porque é que não vejo amanhã, nem salvação? porque é que não me consigo despir da dor, porque é que os problemas multiplicaram por mil enquanto as minhas mãos continuam a ser apenas duas? porque é que nos deixámos a todos sozinhos, porque é que o que tenho já não é suficiente, porque é que não chega, porque é que não há ajuda, solução, final feliz possível? porque é que continuamos a cair? porque é que o mundo é infinito, a solidão é infita, o sofrimento é infinito e este buraco onde caímos é infinito, quando chega o fim? por muito que doa, mesmo que ainda possa doer mais, mesmo que o meu corpo se fragmente em mil, se desfaça, se desmantele, vá cada pedaço numa direcção, porque é que o chão não chega? eu sei e o mundo sabe que os meus ombros já não chegam. eu sei e o mundo sabe que, em breve, fecho os olhos em queda livre e largo tudo, o que não me largou, o que ainda há para largar. porque é que toda a gente à minha volta está a sofrer, porquê? porque é que eu chegava para tanto e agora não chego para nada? porque é que não posso salvar-nos, salvar-me a mim? porque é que vamos todos ficar ainda pior, se há pior, porque é que não chega? porque é que tudo o que façamos não chega? porquê? porque é que não há luz sequer ao fundo dum túnel, porque é que a minha mão procura mas já não tem onde se agarrar? porque é que já não posso ajudar quem tem somente em mim a salvação? porque é que estamos todos destruídos, eu entre lágrimas e cigarros e gritos mudos, tu perante um copo de qualquer substância alcóolica, tu a lamentar a escolha que fizeste num instante e que te mudou a vida toda e a braços com os teus erros de quase criança, tu a refugiar-te no sono e tu, meu amor, sem compreender nada do que se passa ao teu redor, só a saber-te abandonado, e ainda tu, que não tens cérebro humano, que se calhar já nem estás nem mundo, porque nem de ti soubémos cuidar, igualmente abandonado, igualmente mal-amado? porque é que temos este défice de amor, de ser, de nos mexer? porque é que as minhas forças esgotaram, porque é que a minha cabeça já não pensa, a minha paciência já se esgotou, o sal escorre em mim? porque é que eu estou a gritar, porque é que eu estou a gritar tão alto, porque é que eu não sei para onde me virar, porque é que eu sei que, há minha volta, tantas outras pessoas que são, que se transformaram, no mundo para mim, estão igualmente a gritar alto, estão igualmente a enviar sinais, pedidos de socorro, a tactear no vazio, porque é que eu caio, eles caem, nos vemos a cair e, no entanto, o silêncio é infinito à nossa volta, o silêncio se nos prende aos ossos? um silêncio que dói, que urra, de tanto que ecoa.

11 Novembro 2010

this life could be the last

esta vontade de me ir daqui persegue-me, não é de hoje. não foi telha que me deu, é parede de pedra em mim. quero ir-me daqui, mas as âncoras são mais que muitas. há pouco a andreia falou-me que um dos seus sonhos seria ir morar na américa - thanks giving day, subúrbios, cultura americana. pus-me logo a imaginar um dia de acção de graças na américa, com elas a chegarem, a trazerem doces, a rirem enquanto eu sujava metade da mesa com pedaços de perú. depois a imagem cai por terra: não haveria tal coisa. não posso por as pessoas que me importam numa mala e levá-las comigo, ainda que só assim a minha vida fizesse algum sentido. se não estivessem lá, para mim não haveria subúrbios nem cultura americana, mas tardes perto do telefone e updates de programas como o skype para poder ver os rostos delas e ouvir as suas vozes diariamente, e a cada dia ia querer voltar para aqui, ainda que isto, este buraco, não seja nada. é um buraco somente porque, a cada ano que um ser se fixa no mesmo lugar, na minha opinião, ganha raízes, afunda-se mais. porque é que tem que existir a terra deste e a terra do outro? não pode ser a terra de todos? como cidadã do mundo, do planeta terra, serei carimbada de imigrante noutro país, assim como por vezes, inconscientemente, carimbo de imigrantes os de cá? será o meu país como a minha casa, e ponho esmero na escolha dos convidados? serei bem recebidas nas casas de outros? a minha mãe diz que vai, diz que no início do próximo ano pega nas malas e vai morar para a sombra da obra do Eiffel. Perguntei à minha irmã se quer ir com ela, ela disse no mesmo instante que sim, e reconheci nela o mesmo despreendimento fingido que tenho. perguntei-lhe, num acesso de carência que nunca antes lhe tinha mostrado, se tinha coragem de ir sem mim, sem a ana. ela reaforçou que sim. quis repreendê-la, dizer-lhe que é uma egoísta, que não se importa connosco, que, aos dez anos, já é uma calculista. depois percebi que fui eu que lhe ensinei isso, fui eu que lhe disse que se pusesse acima de todos, e ela citou-me isso «não és tu que dizes que nos devemos por sempre em primeiro lugar? que não se deve amar ninguém mais do que amamos a nós mesmos?». pus-me a pensar que eu não consegui cumprir isso, será que ela conseguiria? continuámos a andar e, a dada altura, ela disse «oh, eu digo que ia, mas não conseguia ir sem ti e sem a ana». e eu, aqui estou, a pensar que também não conseguia ir sem meter umas quantas coisas na mala. começava por por as minhas irmãs, depois, escondido, bem escondido, punha o daniel. depois, punha as minhas amigas, depois, fechava a mala. punha-me a pensar na avó, que queria levá-la também, e ao avô - punha-os lá e fechava a mala. voltava a abri-la e acabava por querer por o meu irmão david, a namorada e o "nosso" bebé, não exactamente por não conseguir viver sem eles, mas por achar que ele se sentiria só sem a família, que somos somente nós, irmãos, e o orgulho o impediria de dizer «não vão que vou sentir a vossa falta». depois, fechava a mala, para em seguida voltar a abri-la. punha aquela bola de resina, desaparecida há anos, se a encontrasse, que trouxe da tenência. depois, antes de fechar a mala, punha a fotografia da minha bisavó. depois, punha as árvores e as estrelas que vejo da janela à noite, quando me dá a melancolia e me meto a fumar a horas tardias. o meu caderno de objectivos de vida tinha de ir - ter uma ovelha, aprender italiano - para me lembrar que a vida me tem concedido algumas das coisas que queria, talvez as outras venham ter comigo um dia. punha também os meus livros favoritos, que enchem duas ou três caixas de cartão. depois, punha um punhado da terra de almada num bolso, um dos bolos da minha pastelaria favorita no outro. só aí partiria, com muitos acenos de despedida a muita gente que amo, e as lágrimas, não as conteria. só não levaria na mala o que não quisesse vir, ainda que fosse o que eu mais quereria levar. e, chegando ao meu destino, ainda com cadernos de objectivos, terra de almada, bolos da "loja do pão", bolas de resina, passaria os meus restantes dias a definhar de saudade da única coisa que teria ficado para trás, e que tanto amo, com os livros de lado e a água como simples h2o. mesmo que fumasse a horas tardias e que, sob a minha janela, o céu estivesse carregado com as estrelas de sempre.

é por isso que se aproximam duas estradas que divergem num bosque: e eu, em qual das duas viajarei, sem a minha preciosa mala, com a consciência de tudo o que ficaria para trás, irrecuperável?

2 Novembro 2010

loureiro

 
(foto by raquel baptista - rodrigo's mom)

Ainda não tinha saído da cama quando o pensamento me atingiu: os Loureiro estavam condenados a desaparecer. É verdade absoluta, entre nós, que os homens Loureiro são uns zeros à esquerda comparados com a conduta e as conquistas das mulheres mas, verdade seja dita, não é através de nós que o nome continua. A minha bisavó teve cinco filhos, dois dos quais tiveram filhos homens, e desses que tiveram filhos homens, só o meu pai teve filhos homens. E é isso, o nosso sobrenome ia morrer aqui. Tantos outros se interpuseram, através de casamentos e nascimentos, que o nosso sobrenome estava condenado a desaparecer por este beco por onde enveredou. Hoje de manhã, pensava no meu bebé, no quanto o meu irmão queria um rapaz e não lhe via outra utilidade, por ser rapaz, que não a de querer um filho para ser do Sporting como ele e para jogar à bola, um dia. Depois perguntei-me se a natureza não agirá inconscientemente, se não será do instinto de cada um, especialmente de cada homem, dar continuidade ao seu sangue. Sangue esse nosso que, simbólicamente, acabaria connosco. Agora existe o Rodrigo, Rodrigo Loureiro, e apetece-me sorrir só de constatar isso. Embora por vezes me pareça que pertence mais à família da mãe que à nossa, até por questões geográficas, é Loureiro que ele se chama, é o nosso nome e o nosso sangue que ele vai continuar. Porque eu e as minhas duas irmãs, a ter filhos, não serão Loureiro.

Rodrigo Loureiro, salvador do nosso nome, sem eira nem beira.

1 Novembro 2010

por 30 segundos, voltar atrás

«Os dois conversavam, na noite, sobre um assunto qualquer banal. O orçamento de estado, por exemplo. A dada altura, ela que, sentada, mantivera o rosto erguido para ele, de pé, foi incapaz de esconder um sorriso e desviou o olhar dele. A consciência de que o assunto ficara pendende nos lábios dele, orador, ao vê-la a ela, ouvinte, esboçar aquele sorriso, fê-la sorrir ainda mais abertamente e fitar a rua quase deserta. Esperava, a cada momento, que ele lhe perguntasse porque sorria. Não tinha grande certeza se saberia responder, se sorria apenas porque os seus lábios fugiam para sorrisos quando estava perto dele, ou porque o brilho no olhar dele lhe inspirava uma paz e uma segurança que só poderiam ser traduzidas em felicidade, mas sabia que preferia que ele não lho perguntasse, pois ela não sabia mentir. Ele fê-lo, no entanto, as mãos estáticas a meio de um gesto, um buraco a pontuar-lhe a frase.«De que é que te estás a rir?», perguntou, sem conseguir esconder ele próprio um sorriso. Ela abanou negativamente a cabeça, uma e outra vez, fitando tudo menos a ele, pois a cada vez que o olhasse, sorriria. Ganhou fôlego, pôs as ideias no lugar e explicou-lhe o porquê surpreendida de, a cada palavra, estar segura da sua veracidade e da sua concordância:«Estou-me a rir porque, daqui a vinte anos, vou estar a abastecer o carro numa bomba de gasolina qualquer, e o teu vai parar ao lado do meu, e eu vou reconhecer-te, apesar dos óculos de sol e das rugas na testa e da criança na cadeirinha no banco de trás. E, na altura, já nem sequer vamos ter intimidade para nos falarmos, mas eu vou saber que foste o amor da minha vida, e isso vai trazer-me melancolia, e vai fazer-me desejar poder voltar atrás, nem que fosse por trinta segundos, e reviver o tempo em que, mesmo sem que gostasses igualmente de mim, éramos dois sob o céu nocturno a conversar sobre assuntos como o orçamento de estado e as nossas expectativas de futuro - só aí teve coragem de olhar para ele, ainda com o sorriso a dançar-lhe nos lábios e nos olhos - E estava a sorrir porque, em retrospectiva, estou em êxtase, estou transbordante de felicidade por, mesmo sem ser correspondida, estar a viver esses trinta segundos preciosos agora, neste momento.»

1 Novembro 2010

I don't know why

foi um sonho bom. estava de férias, não sei ao certo onde. era uma espécie de uma vivenda grande, eram várias iguais. ligavam-me a dizer que uma amiga minha que tinha saído há pouco tempo se tinha esquecido do gato lá. só podia ser a vanessa. depois, estávamos todos num pátio, num pátio onde estranhos se sentavam em cadeiras de esplanada, comiam sardinhas e bebiam cerveja. eram estrangeiros, ingleses. e alguém era chamado ao microfone, a cantar qualquer coisa. não me recordo da canção que cantou, sei que, em seguida, perguntaram se mais alguém queria ir cantar. e eu pus a mão no ar e gritei que queria ir, não fosse faltar-me a coragem, não fosse calarem-me a voz. e lá fui, peguei no microfone e demorei apenas dez segundos a escolher a música. depois, fechei os olhos e não vi mais ninguém. nalgumas ascenções, a voz faltava-me, eu imprimia-lhe força, saía meio rouca mas, algures, batiam-se palmas e eu, animada, não me assustava assim tanto com o falhanço. ouvia, indistintos, os comentários dos estrangeiros. e eu que não procurava dar sentido às palavras da canção mas sim, ao invés, abraçar o seu ambiente requintado, quente, de noites de verão, de tardes de inverno a ver a chuva lavar as vidraças, com um copo de vinho entre os dedos e a solidão a deixar-nos ser. you'll be on my mind forever...

I waited 'til I saw the sun
I don't know why
I didn't come
I left you by the house of fun
I don't know why
I didn't come
I don't know why I didn't come

When I saw the break of day
I wished that I could fly away
Instead of kneeling in the sand
Catching tear drops in my hand

My heart is drenched in wine
You'll be on my mind
Forever

Out across the endless sea
I would die in ecstasy
But I'll be a vagabond
Driving down the road alone

My heart is drenched in wine
You'll be on my mindForever

Something has to make you run
I don't know why I didn't come
I feel as empty as a drum
I don't know why I didn't come
I don't know why I didn't come
I don't know why I didn't come
 
30 Outubro 2010

numa nesga de sol, sob os plátanos

nós dois num refeitório que serve de hall. eu a estranhar o tamanho das cadeiras e da mesa, baixos como eu. tu a sujar os lábios com um croissant de chocolate. nós inclinados, as testas quase a tocar-se, os nossos rostos como espelhos, os teus olhos nos meus, e tu, a dizer: eu às vezes, quando vejo televisão, penso em ti. tenho saudades tuas. e eu a sentir que, de alguma forma, está poesia a tecer-se. se a poesia está a acontecer, não pode ser triste e não pode ser exactamente mau. prefiro acreditar que a vida está a seguir o seu curso.

nós num pátio rodeados de plátanos, com gafanhotos sobre as folhas caídas - é outono - e a escalarem os muros de cal. nós sentados lado a lado no único trecho banhado pelo sol matinal do pátio. os nossos rostos como espelhos, as nossas mãos a tocarem-se ocasionalmente, e tu a fazeres-me pergunta atrás de pergunta. por uma vez, não me aborreço por ter de dar respostas. e como é estranho que as tuas perguntas, os teus receios, façam muito mais sentido do que muitas das coisas que oiço diariamente. dizes-me: eu não durmo, tenho medo de dormir, sonho com uma mãe branca e com um homem a correr atrás de mim. e eu digo-te:

dorme e sonha muito, quando te deitares pensa só em coisas boas. tapa-te bem tapadinho, fecha os olhos e põe-te a pensar naquilo que gostas mais: imagina uma mesa cheia de doces, chocolates, aquilo tudo que gostamos de comer, imagina pela janela uma paisagem linda, imagina que, na televisão, está a dar os teus desenhos animados preferidos. não achas que vale a pena sonhar?

Seja como for, a vida não nos retira a possibilidade de ser felizes em sonhos.

James Horner - Exploring the Florest (The Boy in the Stripped Pyjamas soundtrack)
28 Outubro 2010

don't ever worry...

quando tu nasceste, eu ouvia diariamente uma música chamada «'ll catch you», duma tal banda chamada «the get up kids». hoje lembrei-me disso, conforme os nossos dia-a-dias se vão misturando. era suposto cresceres longe de mim, vires visitar-me ao fim-de-semana. agora, ao invés, vieste morar comigo, tu e a nossa irmã 'do meio', a cláu. agora ponho-me a pensar que nasci de novo e que, com a cláudia, voltei à anselmo de andrade e, contigo, vou voltar à escola número 1 de almada. fazes-me feliz nas pequenas coisas, basta o teu sorriso traquina. e porque hoje se falou exactamente disso, em ser-se feliz com as pequenas coisas, eu quero agradecer à consciência geral, aos ouvidos do universo, se é que os tem, por ser capaz de ser feliz com pouco. e só vocês poderiam ter-me ensinado isso. como hoje, quando tu, à mesa do lanche, provaste que levaste a sério as palavras da médica e abdicaste do pão com chocolate e do leite com chocolate e, ao invés, bebeste leite simples e comeste um pão com manteiga. no final, abriste os braços e sorriste: e eu que te digo dez vezes por dia, a cada vez que viras um copo de leite ou que deixas cair uma bolacha, que somos pobres, que aqui não pode haver disperdícios. tu, que abriste os braços e sorriste, disseste, em toda a tua inocência, com toda a tua verdade, dirigindo o olhar para o armário que recebeu ontem o aviado mensal, que sempre tinhas sabido que a casa da avó não era rica, mas que nunca tinhas visto tanta comida.

és feliz com pouco, e eu sou feliz contigo. e, no final das contas, tu é que tens razão. que mais se pode querer?

por isso don't worry, i'll always catch you.

The Get Up Kids - I'll Catch You

can you sleep as the sound hits your ears?
one at a time an unspoken balance here
unabridged for so many years

that I should stare at receivers
to receive her isn't fair
don't worry I'll catch you
don't worry I'll catch you
don't ever worry

your arms in mine any time
wouldn't trade anything
you're still my everything

to my suprise before my eyes you arrive
don't worry I'll catch you
don't worry I'll catch you
don't ever worry

still breaking old habits, habits
you pulled the wool over me
and I can see everything, everything
remembering Jinx-removing

don't worry I'll catch you
don't wory I'll catch you
don't ever worry

no need for reminding
you're still all that matters to me...

23 Outubro 2010

«a ana é p'lo mal»

Estamos deitadas entre a minha avó e o meu avô, enquanto eles vêm televisão. Os cobertores entopem-me o nariz e a respiração, na brincadeira, digo:
- Não sei se vou sobreviver a esta noite, por causa da alergia...
A minha avó hoje foi fortemente convencida por mim e pela Cláudia a comprar uma família de bonecos à nossa irmã mais nova, há uma mãe, um pai e um casal de crianças, empilhados num tubo mais alto que ela. A Ana ficou radiante e a avó ficou verde, diz que ainda não é Natal. Contudo, ao chegar a casa, fez questão de dizer que o mérito da compra é dela. Ao que eu e a Cláudia insistimos que ela apenas financiou.
A Ana está sobre mim, beija-me, beijo a pele suave dela e digo disparates só para irritar a avó:
- Pipz não gostes da velha, ela não te queria dar os bonecos, eu e a Cláudia é que chorámos lá no supermercado para ela trazer, e olha, bateu-nos à frente de toda a gente, mas eu e a Cláudia lutámos tantooo, tantooo, que ela teve de deixar-nos trazer os bonecos para ti!
A avó, ali ao lado, vai fingindo dar palmadas a mim e a ela:
- Isso, a miúda qualquer dia tem uma ideia de mim... Olha Ana a tua irmã é uma falsa, este Natal só te dou prendas a ti.
- Isso é que não! - Diz a Ana, com o dedo no ar - Então eu quando for grande e tiver dinheiro só dou prendas à Célia.
E deixa-se cair para cima de mim, rimos as duas, o avô, que é meio surdo, tenta perceber, e a avó, fingindo-se de indignada, empurra um dedo contra os lábios da Ana e diz:
- Olha então chupa aqui daqui para a frente, não vês mais prendas minhas!
E eu digo:
- Dá uma dentada no dedo da velha, Ana!!!
E a Ana, empoleirando-se como se estivesse a cavalo numa das pernas da avó, afasta o tecido das calças e inclina a cabeça até lhe tocar quase no joelho com o rosto:
- Não, mordo na perna que deve doer mais!

E pum.

21 Outubro 2010

este meu chão que é teu

tu dormias
no teu sono, eras criança
e eu quis falar-te disto
como se desafiasse a sorte
ou como se limitasse o teu caminho rumo a um norte
que é mais meu que teu
tu dormias, pequeno
e falei-te do que em mim era maior
tu de olhos fechados
e eu a contar-te a vida de cor:
a vida como vírgula, como pulsação
ou filme a preto e branco

 o meu chão é teu,
as minhas mãos são tuas
a minha noite é silêncio,
o meu dia é chuva,
o meu chão é teu,
as minhas mãos são tuas

já que foste a todas as ruas,
sabe que o meu chão é teu,
e que as minhas mãos são tuas,
quis-te nas minhas paredes
como se te fechasse em mim,
sei que ver-te aí dentro,
é sonho mais meu que teu

tu sonhavas,
e eu na realidade do vazio,
tu noutro lugar
e a vida a correr sem esperar:
como entrelinha, como travessão
ou filme a preto e branco


o meu chão é teu,
as minhas mãos são tuas
a minha noite é silêncio,
o meu dia é chuva,
o meu chão é teu,
as minhas mãos são tuas
os meus gritos são mudos,
os meus gestos falham,
mas o meu chão é teu
e as minhas mãos são tuas
o meu quintal é teu
a minha terra é tua
o meu dia é teu,
a minha água é tua,
o meu chão é teu,
as minhas mãos são tuas.

21 Outubro 2010

(L)

Deixe dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Tem dolencia de veludo caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !

Mas, meu Amor, eu não te digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !

Amo-te tanto ! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz.

Florbela Espanca - Os versos que te fiz

21 Outubro 2010

insatisfação crónica

É quando leio Florbela Espanca, ou Sylvia Plath, ou Oscar Wilde, ou mesmo Fernando Pessoa, que eu me entendo como uma dessas pessoas que sofrem de insatisfação crónica. Não é que a felicidade não venha, não é que eu não a agarre, é só que me escapa por entre os dedos - e a mão - sou eu que a abro, por gosto de vê-la escapar-lhe.

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca - Lágrimas Ocultas

20 Outubro 2010

i sogni son desideri

«è sempre tragico quando, nei tuoi 20 anni, già sai chi è l'amore della tua vita. l'eternità senza lui è quello che ti aspetta ancora.»

 
(«é sempre trágico quando, aos 20 anos, já sabes quem é o amor da tua vida. a eternidade sem ele é o que te espera»)
18 Outubro 2010

I wish one day I'll be able to say...

«Two roads diverged in a wood, and I — I took the one less traveled by. And that has made all the difference...»

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,


And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.


Robert Frost

14 Outubro 2010

em coro

Lamento sobretudo que, existindo, eu não conheça mais do que uma pessoa que se emocione, estremeça, perante cenas de séries históricas em que rainhas mortas são veladas no interior de catedrais góticas, majestosas, em que a própria banda sonora cria o eco. Se pudesse concretizar desejos, se, os meus pensamentos, ganhassem lugar no mundo real, não creio que me desgastasse a pedir riquezas e grandezas e famas. Ao invés, acho que iria cobrar ao mundo pequenos momentos. Acho que ia querer recriar aquela cena, que me sucedeu uma vez, em que, deitada num sofá, no escuro, me ia deixando envolver pela música que tocava baixinho, como suspiro, como respiração das paredes, como a voz do mundo a falar-nos, e entrou alguém. E esse alguém quedou-se perante a beleza e simplicidade do momento e, em seguida, sentou-se e puxou a minha cabeça para o seu colo. E ali ficou, a ajeitar-me o cabelo, a acariciar-me a fronte, enquanto o nosso silêncio adquiria o estatuto de respeitoso, de reverente. E, no final, abriu então a boca para me fazer sorrir: «que momento tão bonito». Como rainhas de branco, mortas, coroadas, em catedrais góticas com música em coro por trás. Se pudesse, viveria desses momentos, mas não sozinha. Se bem que, por muito vazia que esteja a sala, em solidão não estou. Solidão é outra coisa, não é não estar-se com ninguém, é não se ter ninguém. Viveria então da quietude dos silêncios de apreciação das obras de arte, simplesmente falam comigo.

A Howling Wilderness: the Deat - Trevor Morris (The Tudors 3rd Season soundrack)


 13 Outubro 2010

boo

foi numa noite de chuva, é assim que começarei um dia quando recontar o dia de hoje. chovia, o cão estava deitado sobre o tapete da entrada, com o focinho entre as patas, gania baixinho. vendo-o tão deprimido, virei-me para a minha mãe e perguntei: «mãe, achas que ele se apercebeu que esta foi a última vez que viu as suas adoradas meninas? achas que sabe que amanhã vai para um canil?». ela respondeu que acha que sim, que ele anda estranho, anda tristonho, anda melancólico. vejo-o olhar demoradamente para a dona, enquanto a chuva cai ao nosso redor, e nós abrigados, e ele deitado, elegante, jovem, os olhos meigos a fitarem-na. entendo que muitas decisões são tomadas com o coração, e geralmente o resultado é bom a curto prazo mas desastroso posteriormente. se ela tivesse pensado com a cabeça, nunca se teria rendido ao cachorrinho adorável que, há quatro anos atrás, trouxe para casa, e que cresceu com a sua filha ainda por nascer na altura, e que é da mesma idade dele. ele protege-as, fica em baixo com a falta delas e doido quando as vê. ao menos conheceu ainda o nosso rodriguinho, protegê-lo-ia também, o teimoso, o parvo do cão, como lhe chamávamos carinhosamente (ou não, muitas foram as irritações). foi nesse dia que ele saiu das nossas vida, quero crer. já houve aquela outra vez em que a nossa mãe saiu de casa com ele num carro, e nós os cinco nos abraçámos em casa, eu a consolar os mais pequenos, o david impassível, de rosto fechado, o daniel do seu jeito diferente tão agitado e triste como os outros, a aninha pequena demais para compreender. houve lágrimas, entre nós comentámos os momentos felizes com o Boo, e no final a porta abriu-se, a nossa mãe entrou a esfregar o pescoço, de rosto baixo, e o Boo entrou a correr, lançou-se a nós como se fosse um reencontro feliz. ela disse simplesmente «não tive coragem de me desfazer dele», e nós pusémo-nos a rir e a afagar-lhe o pelo. mas, desde aí, os problemas não terminaram. e hoje, creio, é o último dia do Boo connosco. e o Boo sabe.
(Danny&Boo by celia)
10 Outubro 2010

tradição e tecnologia

E a 7 de Outubro de 2010, 2 dias após a comemoração do centenário da República em Portugal, e 81 anos após o nascimento do meu avô, o mesmo transfigurou-se numa imagem a reter.

Enquanto saio para o café, de mala ao ombro, vejo-o sentar-se em frente ao meu PC e a colocar os phones. E, ainda que não saiba mexer-lhe, que não lhe toque, os olhos concentram-se. À sua frente tem o filme que queria tanto ver. Cá em casa todos gozam, incluindo a minha avó. Há quem pergunte: o que é que ele está ali a fazer?

E a esses respondo:

«Há uma certa beleza, um certo quê a recordar, perante um velho de 81 anos sentado em frente a um computador portátil a assistir ao filme "Amália" Não podia negar-lhe isso.»

8 Outubro 2010

saramago

E hoje caiu-me a melancolia e a saudade, e veio até um certo carinho por uma personalidade invulgar e única, o nosso único Nobel da Literatura, na minha modesta opinião claramente acima da restante maioria dos escritores portugueses, de uma imaginação sagaz e admirável, mesmo já na idade avançada. Hoje, ao ler um trecho do seu último livro publicado, polémico como tantos outros, ocorreu-me que não mais surgirá na televisão, ou serão publicadas no jornal, palavras suas, argumentos, a defender o quão sublimes as suas perspectivas e os seus livros foram, e serão sempre.

Dizia assim:

«Diz-me, ao menos, como te chamas, Abel é o meu nome, disse Caim». não há necessidade de citar a fonte.
 6 Outubro 2010

porquoi tu pleures?

lui l'a dit qu'elle ne devrait changer jamais. lui a dit que ses cheveux étaient uniques, personne les portait comme ça. il l'a dit qu'elle écoutait des chansons étranges, mais un jour quelqu'un les donnerait le valeur juste. il a parlé sur les matins, quand-elle avait un humeur térrible. Un jour, ça ferait quelqu'un rire au matin. Il a parlé sur leur idéologies, difficiles d'accepter, les utopies, les anarchies, la liberté. Personne la comprenait, personne le sentait du même mode. Les jours qu'elle a déclaré perdus, les chagrins, qu'elle a dit que ne finiraient pas, les films que l'a mis a sourrir ou a pleurer. Pour finir, il l'a dit: tu sais que, un jour, quelqu'un viendra pour t'apporter la joié. Quelqu'un saura, comme moi, qu'est qu'il faut pour te mettre a sourrir. quand ce jour arriver, tu ne sentiras pas ma faut. Et elle a pensé, justement, que si il savait tout ça, et n'avait pas veuille d'y rester, si il sentirait tout ça... et il ne l'aimait pas... qui, un jour, justement, qui l'aimerait?

5 Outubro 2010

I know someday www'ww wwww w wwwwwwwww wwww, we wwwwww. ww wwwwww wwwwwwww

ele está cá.
maior que nunca.
apenas mais disciplinado.

we wwwwww wwwwwwww.

 
(foto by claudia loureiro)
tururututururu.
4 Outubro 2010

1.10.10

«Falta dois minutos pra as três da manhã de dia 1 de Outubro de 2010. Corro os corredores do Hospital Garcia de Orta, estou junto ao bloco de partos, à espera, há oito horas. À uma da manhã registaram-se 24 horas desde que as águas da parturiente rebentaram. Mexo o chocolate quente como se fosse café de qualidade. A máquina não tinha açúcar, o primeiro café soube a veneno. Quero que o novo dia comece doce. Sinto as olheiras aprofundarem-se. A máquina de snacks comeu 2€ ao futuro pai da criança, que a esmurrou de irritação. Depois comeu mais 1€ à futura avó materna da criança, que se limitou a reclamar educadamente. Depois comeu mais 2€ a um segurança, que garantiu não ser a primeira vez. As informações são vagas, repetem-se expressões como "está atrasada", ou "não tem dilatação suficiente". Desfolhamos o album de fotografias que a minha mãe trouxe, com fotografias do pai do bebé, fazemos votos que se lhe assemelhe, no tom dourado do cabelo, no esverdeado dos olhos e no branco da pele. Desfolhamos a dezena de ecografias do bebé, dos tempos em que ele media 6mm de comprimento e tinha 6 semanas de existência e parecia um distinto grãozinho de feijão. Agora é tão grande que a mãe não consegue trazê-lo para fora. Está há mais de vinte e quatro horas sem dormir e hoje, certamente, não dormirá. É dia 1 do 10 de 2010. 1 do 10 do 10. Há uma menina de 4 anos, em tudo invulgar, que chama pai ao avô, irmã à mãe, e que namora com o actor da principal da novela da noite. Ressinto-me, falta-me cafeína, falta-me uma folha, falta-me caneta, falta-me um cigarro. Pergunto-me como é que me arrasto para esperas sem um bom livro, sem papel, guardanapo, caneta ou batom.Alguém se dirige à sala de espera e diz "Ela foi levada para o bloco da cesariana, ele já nasceu". O meu irmão ouve em silêncio, o rosto não se altera, e no final diz "Parto estes gajos todos se isso for verdade". Tinham-lhe prometido que ia assistir ao parto, mas é a mãe da parturiente que, há mais de duas horas, desapareceu com a filha pelo bloco de partos. Disse que, por dez minutos, sem medicação, a filha desesperou: chorou, desistiu de ter um dia uma menina, implorou para que acabasse depressa. Médicos e enfermeiros marcham em grupo. Falam novamente nas tais expressões. Dizem que o nosso Rodrigo não nasce antes das 8h da manhã. O amigo do meu irmão, a quem me juntei no pátio a fumar um cigarro, tirou um café da máquina, elogiou-lhe o aspecto, disse parecer um "bitoque" e rimos os três. O choro de um recém-nascido percorre o corredor, mas não é o nosso. Não é o Rodrigo, outrora com 6mm. Finalmente compreendo porque se perscruta cada pormenor de um recém-nascido. Quero que ele seja perfeito: nos pulmões, nas feições, no coraçãozinho do tamanho do seu punho fechado, quero contar-lhe cada dedinho e quero cheirar-lhe a nuca e quero ver-lhe os olhinhos, turvos, a arregalarem-se para o mundo. Ele parece adivinhar o mundo, sabe que está melhor lá dentro, agarra-se à mãe como espero que um dia se agarre à vida. O pai arrasta-se de banco em banco, com os olhos inchados de sono e de cansaço. Acordou às 6h da madrugada anterior. São três e um quarto, as horas não passam. Três pessoas precipitam-se para o secretariado das informações. Quase durmo perante o copo de plástico vazio do chocolate quente. Cruzamos os braços, olhamos para os sapatos, ansiamos pelo melhor. Já me habituei ao odor intenso do hospital, à sua luz macilenta, às vozes na televisão que, em espanhol, anunciam que o presidente do Equador foi liberto pelas forças armadas. A dois metros de mim, oiço a minha mãe remexer as moedas no bolso das calças à procura de trocos para o café. Quer um terceiro café. Relembro-lhe que a máquina não têm açúcar, sugiro-lhe o chocolate quente. Ela aprova-o instantaneamente. Depois, apercebo-me que a vida voltou a fazer sentido nesse instante: estamos no caminho certo, vai tudo correr bem, é que... inesperadamente, conseguiu que o 1 do 10 do 10 começasse doce também para ela.» 1.10.10 3h

O Rodrigo nasceu às 9h10, com três gerações de mulheres a fazer suposições sobre ele nos bancos da sala de espera. O pai estava lá, de mão dada com a mãe. De seguida contou que se refugiou num canto a sós com ele quando lho puseram nas mãos. Mal esconde a felicidade, diz que não vai voltar a submetê-la àquele sofrimento, são novos, queriam outros filhos mais tarde mas ele aceita poupá-la. Primeiro traço de maturidade. Ela diz que não quer mais filhos, que nunca mais acabava, mas consta que quando o recebeu nos braços o encheu de beijos. Cá fora, a bisavó materna, a tia e a avó paterna recebem a mãe da parturiente, que sai primeiro de lágrimas nos olhos e anuncia "já está". Crivamo-la de perguntas. Quando o pai sai, ora diz que ele tem mãos e pés grandes, ora diz que é minúsculo. Descreve-o "é branco, amarelo e azul: branco na pele, amarelo no cabelo e azul nos olhos". Diz que está exausto, vai para casa dormir, volta às 14h. Sentamo-nos mais duas horas na sala de espera e, finalmente às onze, pousamos a vista pela primeira vez nele. É perfeito, o meu principezinho. Tal e qual imaginámos.
Pouco depois da chegada ao Hospital
Última chance de nascer em Setembro
1º Minuto do 1.10.10
Freakin'out
Os olhos a fecharem-se

Ainda não
Lágrimas da avó materna e um "já está"
 
(todas as fotos by celia)
Principezinho

1 10 10

avenida liberdade - o sangue da cidade

Oiço palavras cantadas por alguém da minha margem sobre a capital do meu país. Desço a Rua de Santo António enquanto me deixo embalar. Reparo nas ruelas apertadas, nos diversos cheiros da cidade, pão quente, excrementos, verniz de mobiliário, urina, armazéns de revenda. Começo a ver, lá em baixo, a grande avenida que vai desembocar aos Restauradores. Por mim passam turistas perdidos, ciganos de ar melancólico, mendigos. Olho para o céu, azul povoado de núvens, e para as pedras, outrora livres, que agora pertencem à calçada. Penso na calçada tradicional portuguesa, no xisto e no calcário. Penso na nossa identidade. Penso nas vozes que oiço e atravesso a estrada a correr, agora lá em baixo. É então que ele diz que podemos imaginá-lo ali, na Avenida da sua Liberdade, e faz-me sentir não só no centro da cidade, mas no centro do mundo. Turistas à saída do metro dos Restauradores metem protector solar num bebé de meses que usa um chapéu branco. As pessoas que me ultrapassam por vezes cheiram mal, por vezes delas desprende-se um odor intenso a pele humana, a suor, a mendicidade, os bigodes brancos amarelecidos, o cabelo gorduroso sob um boné desbotado e as mãos grosseiras. Desvio-me da rota do ar que cortam à minha frente, ao caminhar. Passo por mais ciganos de peles morenas, saias compridas, aspecto deslocado. Passo por mais turistas, de chapéu, de rosto corado, que não sabem ao certo a onde dirigir o olhar. Oiço as palavras da música e penso que também eles podem considerar que sou dali, mas eu não sou de lá. Sob as galerias da principal avenida de Lisboa, a mais poluída, a que atinge temperaturas mais altas, a mais prestigiada, a Avenida das grandes marcas, dorme um sem-abrigo, e outro, e outro. Estão enegrecidos pela poluição da boulevard, estão escurecidos pelas altas temperaturas que, no inverno, não os tornam imunes ao frio. Já vi um homem morto sob os ulmeiros e outras árvores da Avenida, por entre memoriais e homenagens a mortos de guerras de outro século. E ele repete que não é de lá, e eu também não. Lisboa é sempre nova para mim, e o encanto é tão grande que desconfio ser este o meu recanto preferido num mundo de áreas infinitas e fronteiras infindáveis. Atravesso a estrada a correr entre a beleza do Avenida Palace, da estação do Rossio e do Teatro Nacional. Dou por mim no centro do Rossio, no centro da praça, sobre a calçada portuguesa, a ondular com ela, a saltitar, a voltar-me para trás para enquadrar o frontão do teatro, a saber que as fontes que me rodeiam são parisienses. Não sou daqui. Não sou daqui. Não sou de cá. Vou apanhar o barco para a minha margem, mas a magia de Lisboa conserva-se lá, eterna. E esta canção que oiço é o melhor hino à capital, não fosse ela assustadoramente realista.

29 Setembro 2010

a, b, c

- Ana, queres aprender a escrever o teu nome?
- Sim - tira-me o lápis da mão e pousa o bico na folha branca entre nós, arrasta-o ao longo da folha:

wwwwwwwwwwwwwwww

- O que é isso, Ana?
- É o meu nome.
- Não, não é. Dá cá o lápis.
- Olha, primeiro fazes uma bola grande, com uma perninha.
(A Cláudia pergunta-me se essa bola grande com a perninha é um A, digo-lhe que fique calada, é a maneira mais fácil, ela só tem 4 anos).
- Agora duas ondas, tuntun, e outra bolinha com a perninha.
Passo-lhe o lápis, ela desenha uma bola grande, um risco comprido, sem fim, e vários wwwww por ali a fora.
- Não, Ana - tiro-lhe o lápis - olha, uma bolinha grande e alta, com um escadote a vir lá de cima até à linha. A seguir, tuntun (desenho o "n") e,  por último, outra bolinha mais pequenina com um escadote mais pequenino a vir de cima para baixo, vês? A-n-a.
- Já sei, dá cá - pega no lápis e faz outro borrão.
Decepcionada, desisto. Sei que a paciência não foi muita. Quando a Cláudia lhe tira o lápis da mão, ela amua, quer aprender. Quer tanto aprender que, só por isso, já me parece que sabe. Já me parece que consegue escrever o seu nome, a minha princesa Ana.


 
(desenho by celia)

27 Setembro 2010

Bolo de Chocolate XX

O bolo de chocolate saiu delicioso, mas partiu-se ao desenformar. Vinha queimado por baixo e tive de lascar a camada preta. Os nervos já eram tantos, que o passei para o tupperware onde vai viajar e ele partiu-e mais um pouco, estalou. Enquanto o cobria com o creme de chocolate, via-o escorrer para o interior das falhas do bolo, ao invés de o cobrir a direito. Fui com a espátula mas era tarde de mais, metade do chocolate fora absorvido pelo bolo. Fechei-o no tupperware para não ter que olhar para ele. Disse à minha avó:
- Se esta fosse a minha casa, atirava o bolo contra a parede e ia fazer outro.
Ela tenta acalmar-me:
- Mas o bolo está mal, é o que interessa.
As lascas que foram tiradas para que o bolo coubesse no tupperware foram molhadas no repicipente onde fiz o creme de chocolante, e juntámo-nos todos a comer os pedacinhos pequeninos. Deixei-me cair num banco enquanto via a minha avó limpar a mesa e ouvi o meu pai dizer, de mãos nos bolsos:
- Já que eu é que tenho culpa de tudo nesta casa, diz que fui eu que o deixei queimar e o parti ao por para o tupperware. Diz que tiveste de sair e o deixaste entregue a nós.
Eu respondo:
- Quem o queimou foi o forno e quem o partiu fui eu. Espero nunca ter que me safar pondo as culpas nos outros.
E a minha avó acrescenta:
- Diz que fui eu então, vá. Fui eu que não o vigiei, e fui eu que o parti, forcei-o a entrar no tupperware.
Quando dou por mim, o bolo já não me parece tão mal, nem tão torto. Trouxe-me alguma luz interior, aquele bolo juntou-nos aos três na cozinha, num acontecimento memorável em que eu, derrotada, fui levantada por duas pessoas improváveis. Dei por mim a sorrir levemente.

Talvez este bolo que quase estraguei seja o melhor que já fiz.

(foto by celia)
24 Setembro 2010

soul mate

Sean: Do you have a soul mate?
Will: Define that.
(...)
Sean: Someone that challenges you.

- Good Will Hunting

24 Setembro 2010

sal

Deus, devias existir. A existir, devias ter o poder de inverter a ordem das coisas. Mas sim, eu compreendo que, tal como num jogo de xadrez, o rei às vezes esteja condenado ao xeque, ou alguma peça tenha que se perder. O mal está na primeira jogada, que foi mal pensada. E agora, o que faremos com o tempo que já perdemos? Oiço a respiração da minha irmã de quatro anos. Há quatro horas atrás eu apagava a luz da cozinha, acendia dois fósforos na escuridão e projectava os meus dedos, a caminharem sobre a mesa da cozinha em contra-luz, numa folha de papel branco. Os seus olhos atentos observavam, arregalados. A sua mente activa ia sugerindo desfechos para a história, alguns deles tão possíveis quanto o oficial. Agora, tenho consciência de tanta coisa que ontem não tinha… felizmente, a dor lava-me a alma. O castigo por ter optado pelos movimentos errados é esta aliança entre tempo que não regressa e noites mal dormidas. Passo os dias em jogos, conversas, tantas delas banais, histórias que invento e reconto, discussões, acertos, negociações, assinaturas e burocracias. Continuo a perder tempo a cada instante. Se as lágrimas correm, é porque quando, de madrugada, puxo o lençol sobre a cabeça, reina o silêncio e, no silêncio, reinam as lágrimas. Reinam pensamentos que preferia não consolidar, reina o arrependimento. Agora eu sei, porque agora vejo, que foste um bebé de quatro anos abandonado. Que, tal como a Ana, precisavas de todo o carinho, toda a atenção, todo o amor que hoje vos dedico, mas que veio tarde e a más horas. Tal como ela, eu devia ter-te lido histórias. Mas, quando eu o David, cúmplices, tidos por tantos como gémeos, inseparáveis, eu com 9 anos e ele com 8, fazíamos do beliche um barco à deriva no mar, tu ficavas de fora, a afogar-te. Meu amor, eu queria tanto poder voltar atrás e puxar-te para bordo. É por isso que me castigo, eu mereço. Eu devia ter-te incluído nas nossas brincadeiras, ter-te feito cócegas, ter-te contado histórias, ter dançado contigo, ter inventado mundos e naufrágios contigo. Deviam ter sido brincadeiras a três. Mas tu, meu pequenino, meu amor, ficavas sentado a um canto, atento às nossas alegrias, à nossa cumplicidade impenetrável, provavelmente a desejar ser pirata ou marinheiro connosco. Estas lágrimas amargas, eu mereço-as. Mas elas também me estão a levar para o fundo. Eu não vejo costa, amor. Não vejo costa, agora afogamo-nos os dois. Agora estamos os dois a engolir água. Vejo e sinto sal em toda a parte, entra em mim, corrói-me por dentro. Devia ter-te salvo uma e outra vez nas brincadeiras, enquanto podíamos ter sido corda inquebrável, os três, e depois os quatro, e depois os cinco que somos agora. Nós somos cinco, e eu não me esqueço. É esse buraco, o número três em falta, que anda a assombrar-me. Não há noite em paz e não há dia que não seja uma fachada da primeira à última hora. Depois basta-me reparar na fotografia do teu cartão de identificação, enquanto como, para todo o peso do mundo me cair em cima e eu largar este mundo de hipocrisias e correr para fora, para o meu banco de teatro, deitar-me e ficar a ver as estrelas enquanto fito o céu. Tenho duas coisas a pedir a Deus, se é que ele existe: primeiro, dá-me saúde para que toda a cor que imagino para o nosso futuro venha por fim. Para que eu possa cumprir a minha promessa de te levar ao jardim zoológico, e depois a África, e agora esta de brincarmos aos piratas, eu serei o náufrago desta vez. A segunda é que, por favor, não escrevas a história pelo pior. Já chega, já chega de nuvens sobre o número três. No futuro distante, faz com que eu vá um segundo antes dele. Nunca ao contrário. Meu anjo, meu amor, meu futuro companheiro de aventuras.

22 Setembro 2010