16 de nov. de 2010

the scent of rain


Será que o Louis Armstrong alguma vez imaginou que seria imortalizado através das suas canções? Quão significativa era a fama na sua época, ao ponto de lhe garantir que hoje em dia, com tantas vias de comunicação, uma rapariga de 20 anos o escolha para companhia numa noite chuvosa de finais de Maio? Hold me close and hold me fast. Quanta beleza em reviver esta época através dos acordes da sua «La Vie en Rose». Give your heart and soul to me. E cá ando. Primeiro decidi ir ao café, depois percebi que estou naqueles dias em que o tempo aperta e em que preciso de estar sozinha. Infelizmente, não tenho tabaco, ponho o orgulho de lado e peço um ao meu pai. Ultimamente, ele está mais prestativo para comigo do que eu para com ele (mais tarde, com o cigarro enrolado que ele me deu na mão, perguntei-me se o que me faltou não foi a aprendizagem do perdão cristão. Mas, uma vez mais, quando quero refugiar-me numa igreja elas estão fechadas. Saí, com um casaco de inverno, para as ruas molhadas. Nem me apercebi que chovia, enquanto a tarde avançava e eu, sonolenta, dividida entre o computador e a televisão. Levei o cigarro na mão, apertado no bolso, minha única preciosidade. Sento-me no meu cantinho habitual, tenho cantos para tudo na minha cidade. Cantos onde me declarei, cantos onde desesperei, cantos onde fui tomada de esperança na companhia das amigas, cantos onde as vi chorar, procurar conforto em mim e nas minhas palavras. Cantos onde tive algumas das minhas conversas mais importantes, cantos onde se fizeram pazes e onde se quebraram relações, confiança, para sempre. As nuvens afastam-se no céu e eu pude ver a Lua, quase cheia. Minha companheira das noites solitárias, das madrugadas intermináveis. Penso: mesmo que o banco esteja molhado sento-me. Seja sorte ou seja porque nem o destino combate a determinação, o banco estava seco. Curiosamente, não quero um retiro, tenho medo de retiros, de recantos onde não há candeeiros de rua nem almas de aspecto não duvidoso. É um local onde passam carros, onde há lojas, luzes, casais a passar. Há cerca de um mês sentei-me lá a observar esses casais, a ver homens de estômago dilatado e mulheres de braços e pernas fortes a caminharem de mão dada. Perguntei-me se os filhos já terão saído de casa, se, quando passeiam na avenida, vão tratar de algo específico ou simplesmente passear. Gosto de pensar que vão só passear, e ponho-me a imaginar como seriam aos vinte anos. Já se conheceriam? Já saberiam que as suas vidas iam estar interligadas para sempre? Já conseguiam antever-se com aquela forma física e aquelas expressões lânguidas no rosto de quem sabe que não vai a lado nenhum? Hoje não estava frio, não vi casais. Vi homens sozinhos a fumar cigarros decentes. Desejei ter coragem de pedir um a um dos transeuntes, mas depois pus isso de lado. Quão desesperada estás por um cigarro? O que o meu pai me deu apagou-se três vezes, à terceira desisti, atirei-o para o chão e chamei-lhe um nome feio. No céu já não havia Lua, as nuvens estavam a acumular-se, ainda vai chover outra vez. Passo em mente alguns dos pensamentos que sei que me levaram à rua e dou-me os parabéns pelo meu auto-controlo, pela contenção que consegui adquirir neste último ano. Aprendi tanta coisa… aprendi que a impaciência não leva a lugar algum, que a minha vida que está perdida já está, há mais para ser vivida. Tenho bons amigos, tenho uma boa relação comigo, apesar de tudo, vou-me aceitando. Tenho ideias que quero pôr no papel. Fecho os olhos e oiço Louis Armstrong. Pego em mim e levo-me para casa, está a ficar mau tempo. No caminho de retorno faço a minha homenagem silenciosa a Louis Armstrong, mais sortudo do que tantos de nós, ele que já morreu, tantos que já morreram e que, se por um lado fazem cá falta, por outro lado teriam desvanecido com o tempo. Imaginem uma Edith Piaf a passar na MTV intercalada com a Lady Gaga, ou Louis Armstrong a seguir a Justin Bieber. Blasfémia. And life will always be, la vie en rose. O encanto de outros tempos...
24 Maio 2010

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