no dia que tu nasceste, eu ainda tinha cinco anos. foi a 20 de março e eu não tinha a noção do tempo. lembro-me de a mãe nos acordar, a mim e ao david, e nos dizer «hoje têm que ir para a avó, o mano vai nascer». o david tinha quatro anos, mas acredito que tenha guardado esse dia de olhos tão esbugalhados quanto eu. eu sabia que aquele dia era para gravar. ainda bem que o gravei, ainda bem que gravei tudo, porque não há um único registo fotográfico nem sequer um ramo de túlipas amarelas como quando eu nasci a marcar esse dia. daí a três dias entraste na casa da minha avó, onde eu e o david saltitávamos por cima do sofá na ânsia de conhecer o intruso. vínhas no cobertor que foi meu, azul às bolinhas brancas, até o cão o desfazer com os dentes. eras e és o bebé mais pequenino que alguma vez vi, com a cabecita coroada de cabelos pretos. não me lembro se a minha avó te pegou, acho que não te ligou muito. mas lembro-me que nessa noite se jantou peixe frito, e lembro-me que quando te deitaram na cama do pai, no quarto dele, eu pus o meu coelhinho pequenino azul à tua frente, na esperança que o visses e percebesses, com os teus três dias de existência, que era um presente diplomático de irmã mais velha para o mais novo. os teus olhinhos pequenos arregalaram-se e fitaram-no, mas até eu na altura compreendi que não fazias ideia do que era aquela massa azul. apoiei o queixo nas mãos e fiquei ali, a ver-te por entre os dedos, a achar-te a coisa mais pequena e mais exótica alguma vez vista, quase imóvel, silêncioso, no teu cobertorzinho azul que já tinha sido meu. depois, a mãe deu a mão ao david, pegou-te ao colo e avançou para a saída. o pai acompanhou-vos e eu lembro-me de ter sentido que a família eram vocês, que eu não tinha bem espaço na vossa mobília familiar. depois, lembro-me que o ruído na cozinha de loiça a ser lavada e de conversas que, felizmente, não me recordo, mas que deviam ter a ver com a irresponsabilidade de se ter um terceiro filho nos tempos que correm. ajoelhei-me ao lado da cama, onde tinhas estado deitado e onde o peluche ainda estava. pousei o queixo nas mãos e fiquei a ver o peluche por entre os dedos. pensei:«o meu irmãozinho estava ali há bocado, vou fingir que ainda está».
17 Setembro 2010
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