16 de nov. de 2010

voilà

«A humanidade, que deveria ter 6 mil anos de experiência, recai na infância a cada geração», Tristan Bernard.

O que é de nós com as preocupações? O que é de nós com as visões limitadas da realidade, onde está a perspectiva, a aprendizagem a dar utilidade ao passado e a lógica, o planeamento, a cimentarem as estruturas do futuro? Porque nos deixamos tomar por coisas pequenas? A minha avó não suporta ver uma alma de pé sem que esta coma de imediato. Eu não suporto filmes pesados antes do almoço. A minha mãe não suporta responsabilidades, prazos, valores a pagar. Eu não suporto a impossibilidade de espreitar para a frente no tempo. A minha irmã, de 4 anos, não suporta que a minha avó a mande calçar-se com gritos, sobressalta-se. A minha avó também não suporta os guinchos dela. Eu não suporto ter de pôr a roupa no aquecedor no inverno. A minha avó fica doida com pratos mal comidos. Eu fico doida com pratos demasiado cheios, desperdícios, insistências. A minha irmã de 10 anos não suporta amigas que a apunhalam pelas costas, ou o equivalente entre miúdas dessa idade. Desconfio que o meu irmão de 15 anos suporta tudo e vive com a impressão de que somos nós que não o podemos suportar. As minhas lágrimas mais justificáveis vão para ele. O meu tio não suporta sujidade, água a verter de torneiras mal fechadas, carne com gordura. Eu não suporto pessoas sem ideais e, simultaneamente, ando a por os meus de lado para desanuviar a mente. O dito cujo, meu pai, não suporta portas por fechar no corredor. Eu não suporto mal entendidos, palavras soltas, afirmações sem nexo, discurso incompreendido. O meu avô não suporta almoçar na cozinha sem acender a luz. À minha avó custa-lhe suportar que ele o faça às duas da tarde de verões luminosos. Eu não suporto horários, não suporto que ditem a minha vida, onde vou estar, o que vou estar a fazer, até quando o farei. A minha irmã mais nova não suporta reprimendas, quanto mais suave for a reprimenda, mais se sente no direito de a questionar, de responder com gritos, amuos e objectos a voar. Eu não suporto má educação ou pais que, para continuarem a ser os «bonzinhos», se recusam a dar uma palmada ao filho. Não suporto quebrar promessas que me fiz. À minha avó irrita-lhe a vizinha de baixo, então põe inúmeros defeitos em cada gesto da dita cuja. À vizinha de baixo, parece-me que lhe irrita a minha avó. A mim irritam-me crianças a gritar nos transportes públicos, pais a sorrir e a dizer, suavemente «senta-te Mariazinha», tantas vezes com o rosto voltado na direcção oposta, como quem diz «não é que tenhas que te sentar, é só que estes senhores feios à volta estão a fazer caras feias». Ao meu avô irrita-lhe o ruído da televisão do quarto, a mesma que deve ter umas quantas décadas. À minha mãe irrita-lhe que os filhos falem alto e, pior ainda, que falem da vida privada nos transportes públicos. Por me irritar que ela se irritasse, sempre falei alto, e sempre falei de tudo nos transportes públicos.

E assim continuamos, num jogo entre o que parece afectar-nos directamente os nervos, a saúde, e o que, por capricho, preferimos dizer que os afecta. Se tinha algum ponto nisto… ainda estou por descobrir. «Il manque une conclusion, Celia! Allez!» «Bem… talvez… bom… er… é para dizer que as pessoas não gostam de se aturar umas às outras, mas quando se amam tudo vale a pena». «Voilà, allors, en français!» <--- à professora de francês irrita que eu responda em português.


 
(desenho by celia)
24 Maio 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário