o mar beijado pela luz dourada do sol de final de tarde - não a luz moribunda de quando o sol já toca a linha do oceano, mas a luz envolvente que precede esse momento. imaginem duas pessoas, um homem e uma mulher. não, tirem isso da cabeça - não andam de mãos dadas, inventaram qualquer coisa nova ao invés. não há mãos dadas nem o sol a tocar a linha do horizonte. imaginem que estão ambos descalços - é isso que partilham, os pés nus sobre o mesmo chão - isso e toda uma visão de vida. imaginem que ocasionalmente os seus ombros se tocam, ambos sorriem, ela de modo sonoro, ele discretamente. imaginem que por um fragmento de minuto, os seus indicadores se entrelaçam, apenas para se soltarem no momento seguinte - foi um afloramento, não há mãos dadas aqui. ela pula por entre as ondas, ele observa da areia. ela abre os braços - tem ilusões de poder voar - ele mantém os seus cruzados. imaginem que os pés dela raramente tocam o chão - ela flutua, saltita, quase levanta voo sobre a espuma das ondas - ele tem os pés firmemente enterrados na areia. imaginem que os lábios dela mal se tocam, pois ela exibe um sorriso constante, em contrapartida, raramente os lábios dele se apartam para sorrir, ele limita-se à subtileza de um curvar dos cantos da boca (no entanto, há luz nos seus olhos). imaginem que ambos já viveram muitas vidas, que esta é apenas outra, que a eternidade é um caminho a percorrer. agora esqueçam a praia, ou melhor, somem-lhe o regresso a casa: ele segue ao volante, ainda sério, ocasionalmente faz um comentário inteligente. não, não estão em acordo quanto à estação em que o rádio vai sintonizado. ela aborrece-se das notícias, tanta realidade a inundá-los através da voz do interluctor, prime o botão do rádio e percorre algumas das suas estações favoritas, depois diz "é isto mesmo", e recolhe as mãos no colo. depois é a vez dele fazer o mesmo, e da rádio ouve-se a voz do interluctor, bem colocada - "...contas públicas de 2011 para 3% do PIB nacional...". ela esboça um sorriso, mais discreto, não quer ser efusiva, a vida pulsa-lhe em cada centímetro de pele e tem que a reter em si, tem que evitar levantar voo a cada êxtase, cair por terra a cada desilusão. é só uma música, diz-se: para quê pular, abanar os pés, bater palmas? é um pequeno triunfo que dura poucos instantes - ele sabe que ela não espera outra coisa, que não que ele volte a mudar o rádio: na realidade, ela ama-o precisamente por cerrar as sobrancelhas enquanto ouve notícias sobre o orçamento de estado, e ele sabe que a ama precisamente porque luta afincadamente por se despir de todas as âncoras e de todos os cinzentos da realidade. assim continuram, amando-se ao mudar a estação de rádio, querendo ser si próprios mas, simultaneamente, sabendo que o outro não sabe ser sem si - como seria ele o homem sisudo a assistir atentamente ao desenrolar dos acontecimentos se ela não estivesse lá a testemunhá-lo? a guardá-lo na memória, a rescrevê-lo mais tarde, a recordá-lo? e seria ela uma eterna criança se ele não fosse o palco onde ela podia, finalmente, representar quem era? ele era como um leitor, o único espectador, de uma peça de teatro que era ela, de um quadro solitário num museu isolado e raramente visitado. imaginem o chegar a casa: ela ia dizer-lhe que queria um cão. ele ia dizer que ela já sabia que ele odiava cães. ela ia dizer que ele tinha que compreender o quão era importante para ela ter um cão. ele diria: "compreendo isso, mas também tens que compreender que eu não quero cães, não gosto de cães". e ela ia insistir, não que quisesse realmente um cão, na realidade até os achava trabalhosos, é só que queria descobrir se ele faria isso por ela: se conviveria com um cão por ela, se o faria para vê-la feliz. e ele, da sua parte, não podia ceder igualmente: era uma questão facilmente aplicável a problemas maiores - ela desistiria da sua ideia se a sua concretização implicasse a sua desaprovação? tinham que saber, ambos tinham que saber um do outro - ela acabaria por dizer que, na realidade, não queria cão algum, mas que já tinha comprado um piriquito sem lhe pedir autorização. haviam de rir, não que fosse digno de ficar registado em nenhum telejornal, reality show, telenovela ou romance de bolso. mas iam rir, tantas vezes, demasiadas vezes. às vezes ia parecer que a vida era leve demais, depois, descobriam uma ruga na testa do outro em momentos improváveis: "em que é que estás a pensar?" - "não viste o rapazinho descalço à porta do armazém?" "não, o que tem?", "nada, pus-me a pensar nas circunstâncias da vida, só isso". e ele ia ficar em silêncio: compreendia-a, sabia que as suas observações seriam um mero eco dos pensamentos dela, preferia o silêncio à condescendência quando esta implicava gastos de energia desnecessários - ele também sabia, que ela sabia, que ele sabia exactamente o que estava a pensar. num par - num grupo, numa expedição - cada um deve ocupar-se daquilo que sabe melhor: ele ocupava-se da realidade, ela do campo dos sentimentos. haveria sempre discussão ao domingo de manhã sobre quem detinha o monopólio do comando da aparelhagem. "chega de notícias de corococó", diria ela. ele diria "chega também dessa lamechice de músicas" - e, com a passagem do tempo, tanto as notícias de corococó como as músicas lamechas se diluiriam em ruído de fundo que tinha o efeito de fazer o outro feliz. agora imaginem que ele sempre quis morar no último andar de um prédio, com um terraço com vista sobre a urbe - imaginem que ela sempre quis um rés-do-chão com um quintal, onde pudesse plantar flores e descarregar nelas o que restava do amor que circulava nela e que não tinha escoamento possível d'outro modo. imaginem que moravam num terceiro andar de um prédio de sete, numa das colinas da cidade, e que tinham três vasos na varanda. imaginem que haveria um meio termo para tudo. imaginem só que era possível...
imaginem duas pessoas sentadas lado a lado em cadeiras, num alpendre, ao cair da noite. imaginem que é uma daquelas noites ruidosas, em que os grilos formam uma orquestra e fazem serenatas à lua. imaginem que a lua é a protagonista de um céu azul profundo - imaginem que essas duas pessoas estão convictas que o amor que sentem pela outra é suficiente para abraçar dezenas de vezes a via láctea. imaginem que as estrelas cintilam como brilhantes sobre a protecção do alpendre, vêm-no através das vigas de carvalho. imaginem que têm uma velha laranjeira num pátio de gravilha que se sê do seu banco, no alpendre. imaginem que, depois de uma vida sem apreciar mãos dadas, têm frio nos dedos, as articulações já não são o que eram, as costas das mãos estão manchadas por sardas e manchas liláses e violáceas. imaginem que as canecas de chá deixaram de fumegar. imaginem que estas pessoas aquecem as mãos uma na outra, sem as dar realmente, que os seus olhares estão fixos no céu dessa noite de outono e que já perderam muitos daqueles com quem partilharam a vida. imaginem que os seus filhos cruzam os céus em aviões e telefonam ao fim-de-semana. imaginem que ela acabou de ouvir as notícias na rádio, sabe que vai chover amanhã. imaginem que ele se emocionou silenciosamente com a canção de louis armstrong que acabou de tocar. imaginem que, lá para o final, ela começou a cruzar os braços, como escudo, perante os males que a inundavam através da rádio - deixava-os vir até si, começou a interessar-se por eles, mas cruzava os braços para impedi-los de a perturbar demais. imaginem que ele começou a abrir os seus, sentia vertigens e agarrava-se à terra, às plantas da horta e do jardim que cultivavam, à laranjeira que plantara. imaginem que ela começou a olhar para as coisas em tom de contemplação, apreciava passear sobre pontes e distinguir peixes de tamanho invulgar a deslocar-se submersos, apreciava o seu sótão e a visão do quintal que tinha dali. e, por fim, imaginem que os grilos continuam a cantar, ambos têm um xaile sobre os ombros, na realidade, o mesmo xaile abraça-os a ambos. e depois, vindo lá de cima, como um manto de neblina, vem outro braço abraçá-los. não, não é deus, aqui não é deus. é o universo a por os olhos neles, o destino a vir recrutá-los. imaginem que é como um pequeno arrepio, uma picada de agulha, e que não chegam a olhar-se uma última vez (nem haveria necessidade disso, ambos têm uma ideia aproximada do número de rugas no rosto do outro). depois, imaginem que apoiam as cabeças na do outro, que os olhos ficam pesados e uma sensação de paz, de absoluta necessidade de descanso, vem e os toma desprevenidos. a consciência desliga-se em três segundos, uma sonolência sem explicação arrasta-os para algo desconhecido, mas sugestivamente confortável. e ficam-se assim, imaginem que acabaram ali. entre os restos de um dia - as chávenas, os xailes, a laranjeira por regar, a loiça na pia da cozinha, a água a aquecer ao lume para encher o saco térmico. o gato (nunca chegaram a acordo quanto ao cão) trancado com eles no exterior da casa. ficam assim, imaginem, nos restos dum dia, dois restos de pessoa.
"Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer" FP
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