«Os dois conversavam, na noite, sobre um assunto qualquer banal. O orçamento de estado, por exemplo. A dada altura, ela que, sentada, mantivera o rosto erguido para ele, de pé, foi incapaz de esconder um sorriso e desviou o olhar dele. A consciência de que o assunto ficara pendende nos lábios dele, orador, ao vê-la a ela, ouvinte, esboçar aquele sorriso, fê-la sorrir ainda mais abertamente e fitar a rua quase deserta. Esperava, a cada momento, que ele lhe perguntasse porque sorria. Não tinha grande certeza se saberia responder, se sorria apenas porque os seus lábios fugiam para sorrisos quando estava perto dele, ou porque o brilho no olhar dele lhe inspirava uma paz e uma segurança que só poderiam ser traduzidas em felicidade, mas sabia que preferia que ele não lho perguntasse, pois ela não sabia mentir. Ele fê-lo, no entanto, as mãos estáticas a meio de um gesto, um buraco a pontuar-lhe a frase.«De que é que te estás a rir?», perguntou, sem conseguir esconder ele próprio um sorriso. Ela abanou negativamente a cabeça, uma e outra vez, fitando tudo menos a ele, pois a cada vez que o olhasse, sorriria. Ganhou fôlego, pôs as ideias no lugar e explicou-lhe o porquê surpreendida de, a cada palavra, estar segura da sua veracidade e da sua concordância:«Estou-me a rir porque, daqui a vinte anos, vou estar a abastecer o carro numa bomba de gasolina qualquer, e o teu vai parar ao lado do meu, e eu vou reconhecer-te, apesar dos óculos de sol e das rugas na testa e da criança na cadeirinha no banco de trás. E, na altura, já nem sequer vamos ter intimidade para nos falarmos, mas eu vou saber que foste o amor da minha vida, e isso vai trazer-me melancolia, e vai fazer-me desejar poder voltar atrás, nem que fosse por trinta segundos, e reviver o tempo em que, mesmo sem que gostasses igualmente de mim, éramos dois sob o céu nocturno a conversar sobre assuntos como o orçamento de estado e as nossas expectativas de futuro - só aí teve coragem de olhar para ele, ainda com o sorriso a dançar-lhe nos lábios e nos olhos - E estava a sorrir porque, em retrospectiva, estou em êxtase, estou transbordante de felicidade por, mesmo sem ser correspondida, estar a viver esses trinta segundos preciosos agora, neste momento.»
1 Novembro 2010
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