16 de nov. de 2010

cor-de-rosa

Tenho um certo orgulho no sentido prático da minha irmã, apercebo-me disso antes de apagar a luz, dando um último olhar ao estojo que ela comprou hoje. Pu-las de frente para bonecas, maquilhagem daquelas coloridas, para a idade delas, e lápis de cera, livros para colorir, esse género de coisas. Ela diz 'vou precisar de um estojo, levo um'. Eu nunca fui assim, sempre vivi do lado cor-de-rosa das coisas. Não que a minha vida fosse cor-de-rosa, mas fui-a pintando aos poucos. Nunca quis roupa no Natal. Entre um livro ou um estojo novo, ou mesmo uma mochila, eu escolheria o livro, mesmo sabendo que na manhã seguinte ele seria só mais um na minha prateleira, porque já o tinha devorado. Com uma moeda na mão, sempre preferi bonecas a po-la no mealheiro. Com uma nota na mão, sempre preferi batons que depois não ia poder usar a cortes de cabelo. A minha avó dizia 'usa o dinheiro para uma coisa útil', eu pegava no dinheiro e fazia-me feliz, fosse qual fosse a pequena extravagância que quisesse. E, aplicando este princípio à vida, acho que sempre preferi o caminho mais elaborado, se me levasse onde quero, onde houvesse maior diversão, ainda que efémera, menos segurança, até. O caminho dos possíveis obstáculos. Sempre me pareceu mais excitante. Telas a blocos de notas. Blocos de notas a jogar no euromilhões. Um maço de tabaco à agenda que andei uma vida até comprar. Talvez não tenha jeito para opções, sensatez na hora das escolhas. Já o comprovei muitas vezes. Tenho terminado tantos textos com 'no fundo, só quero ser feliz'. Pensei que pudesse arrastar isso a vida inteira, que, das duas opções, houvesse sempre uma que me trouxesse, pelo menos, um bocadinho mais de felicidade que a outra. Fui ingénua a vida inteira, e sabia-o, a cada passo. Abri os olhos há tão pouco tempo que hoje, com o braço fora do carro, o cigarro entre os dedos, me apercebi: estou a ver o mundo pela primeira vez, todo ele é novo para mim. Tenho que comprar o casaco que preciso em vez das calças com o design que queria. Tenho que comprar a revista com artigos históricos ao invés daquela que traz os resumos das novelas. Tenho que, ou acabei por preferir, ver o canal de história a assistir a desenhos animados. Eu acreditava, sinceramente, que nunca ia deixar de ver desenhos animados. Acreditava que, tendo gostado demais de ser criança, tendo-me amado como criança, nunca a deixaria morrer em mim. E hoje, com o cigarro entre os dedos, o braço fora do carro, a conversas sobre a vida HOJE, a vida que estou a pisar neste preciso momento, entendi que já morreu muita coisa dentro de mim. Morreu a esperança, morreu o cor-de-rosa. A minha vida é um bocadinho mais cinzenta. Cairam os últimos castelos de areia. A minha prateleira continua cheia de romances, o meu espólio de filmes vistos, acumulados e preferidos só falam de histórias de amor. E eu contemplo-os, como se contempla algo que parece deixado para traz. Falo comigo em inglês, digo-me 'you were so silly until yesterday', and silly would be the word. A definição de 'silly' é 'lack of good sense'. Se calhar é isso, faltou-me sempre o sentido prático, caminhei com o que quis, não com o que sabia que ia encontrar mais à frente. E quando a vida apertava, eu esforçava-me por a ver mais colorida, e acreditava, e era optimista, apesar das acusações de pessimismo, por natureza. Sempre me recusei a acreditar que amanhã fosse pior do que hoje, não será certamente. Mas, ao contemplar-me não só como a criança que fui, mas como a romântica tola, ingénua, crédula, que fui até ontem... Pareço despedir-me de duas pessoas que fui, já não sou, ficaram para traz, que amei e que me fizeram infinitamente feliz. Meus dois vestidos favoritos arrumados no meu armário, junto aos desenhos animados a que já não assisto. E as palavras de ordem agora são 'nunca se sabe', 'não confies', 'não oiças ninguém, pensa pela tua cabeça', 'não lhe contes', 'não deixes que se saiba'. E eu, neste mundo novo que não conheço, deixo cair o queixo uma e outra vez, espantada com o que é a realidade. Espantada com o mundo em que toda a gente à minha volta sempre viveu, mas que só hoje conheci. E quanta lógica, quanta razão, tinham aqueles que me diziam... 'em que mundo vives, rapariga?'.

No meu, devia ter respondido.
No meu,
e era bem melhor.

21 Agosto 2010

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