16 de nov. de 2010

idade média, idade das facilidades

Ok. Agora sonho com cemitérios góticos (atenção que o gótico, para mim, é um estilo arquitectónico/decorativo) supostamente estudados numa aula qualquer (também ela fantasiada). Sonho com uma multidão a seguir-me, eu fujo e enveredo pelas escadinhas minúsculas, baixas, que levam ao cemitério medieval. Nem toda a gente chega lá, nem eu vi nunca um cemitério assim. Era enorme, como uma cidade, cheio de jazigos, não exactamente escuro ou assustador: ao invés, era um festim de arte e botânica para mim. Cada estátua de anjos e santos era mais bonita que a anterior, e eu, sem medo, admirava tudo pela perspectiva cultural. Os corredores de jazigos e os túmulos estavam em fila, em paralelo, com menos de um braço entre eles, e eu recitava o que tinha ouvido na tal aula: 'na época medieval não era suposto voltar-se a abrir os túmulos, daí que os posicionassem tão proximos uns dos outros, não havia roubos nem tinham que voltar a preocupar-se com eles. Ao fundo, junto à parede, está o primeiro e mais bem trabalhado dos túmulos de cada parede, pertence à pessoa mais importante na fila'. E, enquanto subia e descia grutas, o tempo misturava-se. Via nomes como Afonso Henriques e Camões. Ora estava na Idade Média, e caminhava com pessoas que viviam no cemitério, como que exiladas, que acompanhava a subida a pique de uma colina, ora estava na Idade Contemporânea, mas ninguém dos que me acompanhavam sabia que o tempo passara da Idade Média, que seiscentos anos lhe repousam em cima. A dada altura, ouvia vozes nos túmulos. Era arrepiante, por ser quase tocante. Havia uma criança a falar sozinha, um rapaz, como se brincasse, e a mencionar yo-yos, e o túmulo sendo gótico punha-me a perguntar se o espírito dele vivia ali encerrado, mas teria ele acesso à modernidade? E tudo o que eu via era as suas sepulturas góticas, como os túmulos de Pedro e Inês, incrustados numa espécie de gruta. Havia uma idosa a chamar alguém insistentemente, havia um casal a conversar entre si, os túmulos lado a lado. E eu continuava a subir, e dava por mim numa fonte enorme, maior que a de ferro do Rossio, monumental em tamanho e solidez, cujo único acesso se dava através de umas escadas e que não dava para sair se não por elas. Era um círculo, uma espécie de pátio, rodeado pelo cemitério, que descia numa das vertentes e subia noutra. E, na fonte, havia figuras alegóricas que eu devia reconhecer, tinha-as visto na aula. E, aproximando-me da berma, via uma fonte maior lá em baixo, as figuras de bronze submergidas na água límpida da fonte com os rostos desfigurados de azul claro, que é a face do bronze quando envelhece. Eram estátuas jazentes sobre os túmulos grosseiros do gótico, com as caras típicas do gótico, espadas e livros de orações nas mãos, as pregas a direito nas roupas. Estavam debaixo de água e a água borbulhava conforme a fonte, cá em cima, a cuspia lá para baixo. E era então que surgia um homem de fato, em tudo moderno, e gritava a outros: «parem-nos, eles estão a tentar accionar o mecanismo para que a guerra acabe a favor da África do Sul». E eu começava a fugir e, no círculo, tropeçava numa alavanca enorme, e só podia ser isso que libertaria qualquer coisa na fonte e que, por obra e graça divina, daria, numa guerra imaginária, uma vitória igualmente fantasiosa à África do Sul.

Cemitérios e igrejas soaria melhor, mas daí a nada sonhava com o registo civil e com imensa gente a casar-se e eu a oferecer-me para tirar fotografias, para ajeitar chapéus, vestidos, gravatas. A dada altura, olhava para uma pessoa que não me diz nada mas que sabia que casaria comigo, dirigi-me não a ele, mas à minha avó, que era a autoridade que estava a realizar os casamentos, e dizia: 'avó, já que se estão todos a casar, também me quero casar', e achava imensa graça ao assunto: quem diria que o suposto dia mais importante da minha vida ia ser decidido do nada, eu com uma roupa sem graça, uma saia de lã cinzenta, a blusa não consegui ver, o cabelo de qualquer maneira, quem diria, e já estava a ver a história assim escrita. E a minha avó, calmamente, dizia-me:
- Senta-te, rapariga. Tu não gostas dele. Não se decide um casamento assim. Mais vale esperar.
E eu, envergonhada por ter escolhido por uma vez o caminho mais fácil, aquele que o destino abre para nós na esperança que não nos tornemos mais do que o que ele oferece, que não agarremos mais e melhor do que o que ele atira para o nosso caminho e torna conveniente e oportuno, sentava-me a ver os casamentos. E esperava, esperava, esperava...

6 Junho 2010

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