16 de nov. de 2010

santo antónio do estoril

As pessoas são estranhas, mas eu sou mais estranha do que elas. Primeiro, constatei que as reconheço pelos sapatos que usam ou pelo livro que andam a ler. Geralmente, não associo rostos a este calçado e as estas leituras. Depois, não consigo deixar de ser observadora, disseco a realidade ao meu redor como se esta pudesse desfragmentar-se em descrições – adjectivos, enumerações, palavras ao invés de realidade concreta. Ainda hoje na praia, frequentemente peguei na caneta para assentar qualquer coisa, e depois vinha a preguiça e eu desejava ser capaz de manter esse pormenor vivo na minha cabeça: a bebé temerária que entra água dentro, uma nova ideia para um romance, os rapazes que rebolam na areia à beira mar, que bela cena romântica – não fossem do mesmo sexo e não fosse a sociedade juíza de condutas – o praticante de halterofilismo loiro, com as feições outrora bonitas endurecidas pelo exercício, o corpo bem delineado, sem traços de pelos e com um piercing no mamilo que, ao passar por mim, me faz abanar negativamente a cabeça num gesto quase imperceptível e oiço a minha voz interior dizer «será que ainda há um homem normal? Com os pelos com que nasceu, o corpo com que nasceu, os adereços com que nasceu? Não aguento mais pessoas transformadas em árvores de natal». Depois há o casal ao meu lado, quando me deito de barriga e, sob o braço, espreito para a tatuagem nas costas da mulher. Não posso evitar a má ideia que tenho dela: além das tatuagens, tem o cabelo pintado de loiro, uma expressão indescritível mas bastante reveladora do carácter e, mais, da vida, e usa o típico biquíni preto das namoradas de motoqueiros, ex-presidiários e durões em geral. Fixo os dois olhos que ela mandou desenhar entre as omoplatas, as sobrancelhas e a sua expressão agradável. Dou por mim a gostar de uma tatuagem, a saber que tem um significado qualquer importante. Concentro-me ainda mais na mulher, quero que olhe para mim para tentar reconhecer aqueles olhos desenhados nos dela. Será ela? Depois acordo da distracção e lembro-me que está o homem ao lado, um pançudo deitado de costas, daqueles que querem bronzear-se à pressa à custa de dias inteiros ao sol a assar como febras e cujo bronzeado que ostentam o verão inteiro tem aquela tonalidade dolorosa de vermelho vivo que sugere como o adquiriram. Penso, chocada: serão os olhos dele? Apetece-me esconder a cara nas mãos, só tenho 20 anos, sou uma irresponsável, e como posso ser tão sensata perto desta gente? «O mundo está perdido», repito-me, enquanto o mesmo se perde um pouco mais: para meu choque, a mulher inclina-se para o «thug» (os ingleses sempre foram melhores a por rótulos) e beija-o, mas não duma forma minimamente normal ou, vá, aceitavelmente romântica. Não, aquele beijo grita sexo, e eu sinto o estômago às voltas quando sou assaltada por imagens daqueles dois metidos nisso. Quero desviar a cara mas, ao mesmo tempo, não posso crer que a mulher esteja mesmo a lambê-lo, que ele esteja a fazer gestos com a língua como se fosse uma serpente, que ela se endireite para voltar lá uma, e outra, e outra vez. Fecho os olhos enojada: será que aquilo é o amor daqueles dois? O amor como bichinho de estimação adquire personalidades diferentes, fruto dos dois pais que o criam. Como é que se chega a uma coisa assim? Fico horrorizada só de imaginar. Depois vejo mulheres de meia-idade a passar, com estômagos enormes, e penso que aquela vou ser eu. Daí a nada, passa a terceira idade, com as pernas sem forma, como andas todas a direito, atravessadas por veias azuis destruídas e peles flácidas, com bonés ridículos às flores. É a vida de cada um, reflicto, mas também aquelas mulheres já foram eu, ali estendida na toalha, no Estoril, feliz com a minha cor pálida e com os defeitos do meu físico, e teriam elas consciência de que a vida passa rápido demais?
Entretanto, está calor demais, vou embora. Em redor do pedaço de areia vazio que deixo para trás, alisado pela minha toalha, ficam a mulher do biquíni preto e o «thug», fica a cinquentona de cabelo pintado de loiro, fica a da terceira idade com as alças do biquíni presas sob os braços e a pele rugosa a reluzir ao sol, fica um mar de gente na água, fica a mãe da criancinha, cujo cabelo alcança o fundo das costas, e fica o amigo do praticante de halterofilismo, um brasileiro cuja pele é da tonalidade do caril e cujo corpo denuncia a passagem do tempo sobre a última depilação.
(desenho by celia)
21 Maio 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário