As pessoas são estranhas, mas eu sou mais estranha do que elas. Primeiro, constatei que as reconheço pelos sapatos que usam ou pelo livro que andam a ler. Geralmente, não associo rostos a este calçado e as estas leituras. Depois, não consigo deixar de ser observadora, disseco a realidade ao meu redor como se esta pudesse desfragmentar-se em descrições – adjectivos, enumerações, palavras ao invés de realidade concreta. Ainda hoje na praia, frequentemente peguei na caneta para assentar qualquer coisa, e depois vinha a preguiça e eu desejava ser capaz de manter esse pormenor vivo na minha cabeça: a bebé temerária que entra água dentro, uma nova ideia para um romance, os rapazes que rebolam na areia à beira mar, que bela cena romântica – não fossem do mesmo sexo e não fosse a sociedade juíza de condutas – o praticante de halterofilismo loiro, com as feições outrora bonitas endurecidas pelo exercício, o corpo bem delineado, sem traços de pelos e com um piercing no mamilo que, ao passar por mim, me faz abanar negativamente a cabeça num gesto quase imperceptível e oiço a minha voz interior dizer «será que ainda há um homem normal? Com os pelos com que nasceu, o corpo com que nasceu, os adereços com que nasceu? Não aguento mais pessoas transformadas em árvores de natal». Depois há o casal ao meu lado, quando me deito de barriga e, sob o braço, espreito para a tatuagem nas costas da mulher. Não posso evitar a má ideia que tenho dela: além das tatuagens, tem o cabelo pintado de loiro, uma expressão indescritível mas bastante reveladora do carácter e, mais, da vida, e usa o típico biquíni preto das namoradas de motoqueiros, ex-presidiários e durões em geral. Fixo os dois olhos que ela mandou desenhar entre as omoplatas, as sobrancelhas e a sua expressão agradável. Dou por mim a gostar de uma tatuagem, a saber que tem um significado qualquer importante. Concentro-me ainda mais na mulher, quero que olhe para mim para tentar reconhecer aqueles olhos desenhados nos dela. Será ela? Depois acordo da distracção e lembro-me que está o homem ao lado, um pançudo deitado de costas, daqueles que querem bronzear-se à pressa à custa de dias inteiros ao sol a assar como febras e cujo bronzeado que ostentam o verão inteiro tem aquela tonalidade dolorosa de vermelho vivo que sugere como o adquiriram. Penso, chocada: serão os olhos dele? Apetece-me esconder a cara nas mãos, só tenho 20 anos, sou uma irresponsável, e como posso ser tão sensata perto desta gente? «O mundo está perdido», repito-me, enquanto o mesmo se perde um pouco mais: para meu choque, a mulher inclina-se para o «thug» (os ingleses sempre foram melhores a por rótulos) e beija-o, mas não duma forma minimamente normal ou, vá, aceitavelmente romântica. Não, aquele beijo grita sexo, e eu sinto o estômago às voltas quando sou assaltada por imagens daqueles dois metidos nisso. Quero desviar a cara mas, ao mesmo tempo, não posso crer que a mulher esteja mesmo a lambê-lo, que ele esteja a fazer gestos com a língua como se fosse uma serpente, que ela se endireite para voltar lá uma, e outra, e outra vez. Fecho os olhos enojada: será que aquilo é o amor daqueles dois? O amor como bichinho de estimação adquire personalidades diferentes, fruto dos dois pais que o criam. Como é que se chega a uma coisa assim? Fico horrorizada só de imaginar. Depois vejo mulheres de meia-idade a passar, com estômagos enormes, e penso que aquela vou ser eu. Daí a nada, passa a terceira idade, com as pernas sem forma, como andas todas a direito, atravessadas por veias azuis destruídas e peles flácidas, com bonés ridículos às flores. É a vida de cada um, reflicto, mas também aquelas mulheres já foram eu, ali estendida na toalha, no Estoril, feliz com a minha cor pálida e com os defeitos do meu físico, e teriam elas consciência de que a vida passa rápido demais?
Entretanto, está calor demais, vou embora. Em redor do pedaço de areia vazio que deixo para trás, alisado pela minha toalha, ficam a mulher do biquíni preto e o «thug», fica a cinquentona de cabelo pintado de loiro, fica a da terceira idade com as alças do biquíni presas sob os braços e a pele rugosa a reluzir ao sol, fica um mar de gente na água, fica a mãe da criancinha, cujo cabelo alcança o fundo das costas, e fica o amigo do praticante de halterofilismo, um brasileiro cuja pele é da tonalidade do caril e cujo corpo denuncia a passagem do tempo sobre a última depilação.
Entretanto, está calor demais, vou embora. Em redor do pedaço de areia vazio que deixo para trás, alisado pela minha toalha, ficam a mulher do biquíni preto e o «thug», fica a cinquentona de cabelo pintado de loiro, fica a da terceira idade com as alças do biquíni presas sob os braços e a pele rugosa a reluzir ao sol, fica um mar de gente na água, fica a mãe da criancinha, cujo cabelo alcança o fundo das costas, e fica o amigo do praticante de halterofilismo, um brasileiro cuja pele é da tonalidade do caril e cujo corpo denuncia a passagem do tempo sobre a última depilação.
(desenho by celia)
21 Maio 2010
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