Ainda não aprendi a lidar com a minha disfunção. É uma coisa que me está enraizada e que me impede, praticamente, de lidar (com as pessoas e o mundo) com naturalidade. Não é que não seja perita na arte da encenação: não é que actue, não é que represente. No entanto, sei o que é esperado de mim. Se eu fosse eu a 100%, as pessoas fugiriam de mim. As pessoas anseiam por serem todas iguais, mesmo quando urgem por se distinguir: o caminho que escolhem, geralmente, aproxima-as mais ainda de outras que se distinguem na mesma categoria. Isto porque a similaridade ajuda a um certo anonimato, a uma certa sensação de culpa partilhada que acaba por ilibar-nos. Fiz errado? Ele também fez – julga-nos aos dois. A roupa fica-me mal? Ela tem uma saia igual, diz que temos ambas mau gosto. Assusta-me a ideia vaga, a suspeita que tenho, de que se desse uma moeda pelos pensamentos de alguém, me arrependeria no instante a seguir. Será que me julgo melhor do que alguém? Parece-me atroz pensar isso, não o penso, não o quero pensar. Diferente, talvez, na maioria das coisas. Eu não me conheço, se me conhecesse não me consideraria disfuncional, já teria aprendido a lidar comigo. Algumas coisas permanecem-me na memória: palavras como «desequilibrada», «és um bocado estranha, bem, não é estranha, é mais como se não houvesse mais ninguém como tu», não exactamente como elogio, vão-me empurrando para um canto. Não sei mentir e a verdade leva-me a encrencas. Não quero mentir: a verdade é demasiado preciosa para ser distorcida. A partir daí, eu não consigo mudar. Eu não quero mudar. Há coisas que são minhas e que me fazem orgulhar de mim mesma, será que há muita gente que possa dizer isso de si próprio? E quais serão os motivos? Será que eu domino o conceito de «orgulho» ao ponto de aplicá-lo correctamente? Será que tenho motivos para me orgulhar de mim própria? Na realidade, as coisas de que me orgulho não dependem de mim. Orgulho-me de coisas que vieram ter comigo independentemente de trabalho ou de esforço da minha parte: a minha inteligência particular, atenção: não é uma inteligência geral, não sou sabichona, não sei tudo e sou ignorante em muitos assuntos, mas há coisas que se formam com lógica em frente a mim e assombra-me que não seja assim para todos. Se falo de orgulhos pessoais, pelas vezes que me deito a baixo com análises intermináveis de coisas que nem compreendo bem, devo injectar-me uma boa dose de auto-estima: eu tenho sorte, não tenho muito jeito para tomar decisões, mas à crise segue-se, geralmente, qualquer coisa (se grande) sensata. Tenho amor e respeito próprios, nem toda a gente sabe sequer o que é isto. Tenho as minhas metas bem definidas, por muito utópicas que sejam, sei em que direcção caminho, não me limito a caminhar. Sei quem sou, diariamente, e se não sei exactamente o que fazer, sei exactamente o que faria, sendo a C. dos últimos 20 anos – tenho guide lines que me ajudam a continuar, como fio condutor de quem sou. Já houve alturas em que mal soube lidar comigo mas, na realidade, sou apaixonada por mim. É um amor longo e contínuo, envolveu muito trabalho, muitas desavenças, muito choro, muita expiação de pensamentos e acções. Houve arrependimentos e desilusões e promessas desfeitas e novos objectivos, mas não houve separação. Não houve divórcio nem cisão. Nem estou repartida em dois: hoje é dia negro, tens estas cartas, hoje é dia de luz, tens estas. É verdade que falo demasiado alto, que rio demasiado alto, que sou demasiado preguiçosa. Não sei por a máquina de lavar roupa a funcionar, não gosto de lavar loiça, não faço a cama há meses (aparece feita), não tenho facilidade em tolerar o que não me apraz, embora não o condene necessariamente. Não me agrada o simples pensamento de imitar alguém, de tomar as ideias de outro como minhas, de concordar à primeira ou discordar, só porque é A, B, ou C, ou é o assunto X ou Y. Oiço, penso. Às vezes já estou a argumentar antes do fim, já estou a gritar que não é assim. Mas ouvi, pus numa gaveta. Em casa repenso, se for caso, peço desculpa, reformulo. Não mando flores, mas mando sms, dou um beijo, um abraço, sorrio, digo «desculpa». Dou por mim a agradecer por ter limitados dois recursos que parecem abrir portas hoje em dia, garantir carácteres, rotular pessoas: beleza e dinheiro. Penso que com isto a vida teria sido mais fácil, eu seria mais fácil, seria certamente menos. As facilidades dão menos luta, sem luta não há cicatrizes. Se eu fosse totalmente feliz, não me daria ao trabalho de pensar. Nada me dá mais gosto do que responder certo a uma pergunta. Igual prazer dá-me fazer uma pergunta sobre algo que desconheço e ouvir, do outro lado, uma resposta clara. «Já aprendi qualquer coisa hoje». Lamento que a minha espontaneidade seja, frequentemente, confundida com arrogância ou loucura. Os meus lapsos que transparecem o que sou realmente, ou seja, a voz com que me falo interiormente, assustam na generalidade. Quando peço desculpa peço mesmo. Quando digo «é a milésima vez que me esqueço disto» não estou a tentar ser engraçada. Quando digo «eu sei isso! Pergunta de novo, eu sei» não estou a exibir-me, estou a fazer-me feliz. Quando digo «eu não sou deste lugar e eu não gosto destas pessoas», estou a expressar algo meu e irracional. Quando digo «amo-te», digo mesmo «amo-te», ainda que tenha um copo na mão ou a conversa não venha a propósito. Sim, e eu tenho amigos que me limpam as lágrimas com rosas, literalmente. Essas lágrimas estão cristalizadas em pétalas vermelhas, são sódio agora, sal na ponta da minha língua, quando as provei. A lágrima já secou, a rosa secará em breve. Os meus amigos fazem da minha vida um poema, é por isso que enceno (embora não tanto com eles) ou seria intratável. Por isso, repito: quando eu digo «amo-te», os meus amo-tes não vão a lado nenhum: estão cá, enraizados nos meus vales.
5 Maio 2010
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