Esta noite tive este sonho estranho. Ando a ter sonhos estranhos diariamente, e ando a recordar-me deles, o que é igualmente estranho. Esta noite sonhei que a avó Irene (que morreu há uns dez anos, mãe adoptiva da minha mãe) ia ser enterrada e que estávamos a escolher um cemitério. Passei metade do sonho com receio de ver o corpo da pobre criatura, até que me apercebi que no cemitério havia luz, flores coloridas, o céu estava azul e não havia grupos de pessoas vestidas de preto. Havia, sim, um piano preto de cauda, magnífico. A avó Irene ficou sempre associada ao piano que vendeu quando começou a ficar sem dinheiro, um piano que a minha mãe adorava e que, segundo consta, foi vendido por «três contos, na época». A questão era: o que fazer com o piano? A minha mãe não o queria em casa, dizia não ter espaço suficiente para uma peça tão grande, além do cão e das crianças poderem danificá-lo. Dizia que não o queria na casa da sua «pior inimiga», o que soa dramatizado mas fez sentido no sonho, e isso garantiu-me que ele não ficaria comigo porque ela e a minha avó não se entendem. E eu olhava para o piano e imaginava-me a tocá-lo, era um instrumento inspirador, magnífico, negro, a brilhar ao sol com letras prateadas referentes a uma marca qualquer que desconheço. Queria ficar com ele, desesperadamente, mas não podia dizê-lo à minha mãe, quis respeitar o orgulho dela porque sabia que, se lho pedisse, ela deixava-o ficar comigo e eu teria de ter o triplo da responsabilidade devido à sua relutância, cada risco que lhe causasse seria severamente julgado. Então calei-me, preferi ficar sem o piano e sem a responsabilidade. Vi homens ergue-lo em roldanas (vá lá perceber-se porquê, é um sonho), até um tecto composto por painéis de lona interligados, e limparem-no, esfregarem-no, afinarem-no, polirem-no lá em cima. Cá de baixo, ficava a observar e a pensar que era uma pena o piano ser enterrado com a minha avó, ser comido pela terra juntamente com ela quando podia ganhar vida nas minhas mãos. Sempre quis aprender a tocar piano. A dada altura, uma das minhas irmãs, a meu lado, segurava algo como um balão bicudo. Eu sacudia-lho das mãos por algum motivo, e ele ascendia até lá acima, com todos nós a suster a respiração cá em baixo. O bico do objecto embatia na loja, lá em cima, e ela rasgava-se, como um balão que rebenta, e o piano caia cá em baixo, perto de nós. Lembro-me de me aproximar, quase petrificada, e ver pequenos parafusos tortos, e pensar que nem os parafusos haviam sobrevivido, se é que um piano tem parafusos. O piano estava perdido. Depois vinha a minha mãe e olhava sobre o meu ombro, desapontada, furiosa. E eu dizia, simplesmente, na última coisa que me lembro do sonho:
- Assim dá menos trabalho a enterrar.
- Assim dá menos trabalho a enterrar.
The Heart Asks for Pleasure (Piano) - Michael Nyman (The Piano Original Soundtrack)
(desenho by celia)
3 Maio 2010
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