Agora a minha dedicatória, já que ser mãe é a minha aspiração máxima na vida. Não a faço tanto por necessidade de me expressar neste dia mas mais por vontade de recordar, talvez seja o dia ideal. Eu que tenho este desligamento quase geral de todos os laços comuns, não posso negar o teu papel nisto que sou. Não só na vida que me deste, como se lançasses um sopro sobre esta árvore que sou eu, mas aquilo que vive diariamente comigo, por baixo dos meus ossos.
Primeiro: a música. De algum modo, encontramo-nos aí. Segundo: o orgulho, desencontramo-nos aí. O teu orgulho é silencioso, é contido, é adiado. As revelações vêm muito mais tarde, quando já não as esperava. O meu grita, gosta de timings, gosta de um bocadinho de drama (toda eu sou dramática, diga-se). Terceiro: coisas que não posso enumerar. Hoje dormi à tarde, mãe. Quando acordei, não sei porque carga de água, lembrei-me que costumavas fazê-lo quando éramos pequenos, eu e o David e, um bocadinho mais tarde, o Daniel. Talvez porque as miúdas não me deixavam dormir com a histeria, e tive de levantar-me, pôr a Ana no colo e dar-lhe três palmadas. Depois voltei a deitar-me, maldisposta, com a mão a latejar e a perguntar-me: serei assim como mãe? Dormirei à tarde? Vou levantar-me mal disposta quando os miúdos fizerem barulho? Outras coisas me ocorreram, e que não posso mencionar relacionadas com isto. Lembro-me de dormires enquanto eu e o David víamos o livro da Selva, ele devia ter três anos e eu quatro e meio (ainda não existia o Daniel). Lembro-me das repetidas desgraças com os hamsters, tarde atrás de tarde: numa despejávamos a areia toda para o interior da gaiola e a pobre hamster tinha que resgatar os filhos recém-nascidos. Noutra eu lembrava-me de raptar um dos bebés, um pouco mais crescido, e molhar-lhe as patinhas num copo de plástico com água (era verde!) até o bicho não se mexer e eu ficar sempre como a possível culpada da sua morte (a chinela era preta). Lembro-me de ti sentada, tão mais nova, tão mais vaidosa com o estojo de maquilhagem que desgracei no lava-loiças (debaixo de água) num tentativa vã de esconder os estragos anteriores, com a colher de pau na mão e a boca comprimida, a tentar obrigar-me a comer guisado com milho, e eu a chorar, e tu a falar na bela e no monstro, e eu a imaginá-la no quarto ao lado, aquele cheio de luz onde raramente entrávamos. Lembro-me de ti a levar para casa um cão que foi atropelado (outra coisa que nem qualquer mãe faria, mas tu fizeste) e a cuidar dele na marquise até ele estar bom, vir a correr um dia pelo corredor e derrubar-me à entrada na sala: caí para trás e bati com a cabeça no chão, o pai exigiu que o pusesses fora e assim foi – tinha nome, este cão? Lembro-me das geringonças que nos levavas para brincarmos, porque corrias as feiras todas, tivemos Tamagochis, tivemos yo-yos, tivemos tanta coisa que não posso recordar. Lembro-me de brincar no tapete do hall (que era quadrado a acompanhar a largura do espaço) e de fingir que nadava, como se só por ter aquela forma o tapete fosse uma piscina – ainda me recordo do cheiro do pó. É engraçado, mas as minhas memórias de infância são contigo. Não tenho ideia do que fazia na casa da minha avó, excepto de pequenos recortes que te dizem respeito, e sei que era com a minha avó que morava, mas de pouco me lembro. Lembro-me de ouvir longas explicações sobre porque é que não podia ir viver contigo. Lembro-me de ir embora contigo e com o David, que era como meu irmão gémeo, e irmos a combinar ao que é que íamos brincar quando chegássemos a casa. Lembro-me da bata azul que usavas, da colher de pau redonda, como uma concha, e do risco preto que fazias nos olhos. Lembro-me de gostares de ver o Tom & Jerry, de rires mais do que nós. Que mãe ri mais do que os filhos num desenho animado? Lembro-me de rebolares connosco no chão, lembro-me também da irresponsabilidade em tantas coisas e das coisas más, mas essas gosto de esquecer.
Quando penso nisto, recordo-me que uma vez disseste que, na tua juventude, sempre te disseram que nunca ias ser mãe. Entretanto, tiveste 5 filhos e chegaste onde estás hoje. E não tens nada da mãe convencional: não és escrava de horários, não os impões, não cozinhas bem, não nos/lhes vestiste/vestes collants quando está frio ou nos levaste a horas à escola. Às vezes não lanchávamos porque estavas a dormir, a minha avó ficaria doente se os netos não lanchassem à tarde. Foste a outra moeda, graças a ti, conheço um bocadinho das duas coisas. Graças a ti, espero ser uma boa mãe um dia, espero conseguir ter nota máxima no meu sonho de vida. Espero rebolar no chão com os miúdos, espero ser o polícia mau que lhes dá palmadas no rabo e, daí a nada, rir-me às gargalhadas deles e das suas caras amuadas. Sim mamã, lembro-me de te chamar mamã quando era pequena, espero que ainda haja desenhos animados bons como o Tom&Jerry e que eu me ria mais alto que os meus filhos, e que a minha alegria os contagie como a tua nos contagiava. Espero que não haja assuntos tabus e que eu consiga arranjar um gira-discos. Deixa-me deleitar-me a imaginar que, tal como eu, a minha Eva vai emergir da sala com o disco do Bob Marley na mão, Exodus, e vai pedir-me: - Mamã, mete este por favor.
Como se o tempo voltasse atrás, como se o mal do mundo não contaminasse tudo.
Primeiro: a música. De algum modo, encontramo-nos aí. Segundo: o orgulho, desencontramo-nos aí. O teu orgulho é silencioso, é contido, é adiado. As revelações vêm muito mais tarde, quando já não as esperava. O meu grita, gosta de timings, gosta de um bocadinho de drama (toda eu sou dramática, diga-se). Terceiro: coisas que não posso enumerar. Hoje dormi à tarde, mãe. Quando acordei, não sei porque carga de água, lembrei-me que costumavas fazê-lo quando éramos pequenos, eu e o David e, um bocadinho mais tarde, o Daniel. Talvez porque as miúdas não me deixavam dormir com a histeria, e tive de levantar-me, pôr a Ana no colo e dar-lhe três palmadas. Depois voltei a deitar-me, maldisposta, com a mão a latejar e a perguntar-me: serei assim como mãe? Dormirei à tarde? Vou levantar-me mal disposta quando os miúdos fizerem barulho? Outras coisas me ocorreram, e que não posso mencionar relacionadas com isto. Lembro-me de dormires enquanto eu e o David víamos o livro da Selva, ele devia ter três anos e eu quatro e meio (ainda não existia o Daniel). Lembro-me das repetidas desgraças com os hamsters, tarde atrás de tarde: numa despejávamos a areia toda para o interior da gaiola e a pobre hamster tinha que resgatar os filhos recém-nascidos. Noutra eu lembrava-me de raptar um dos bebés, um pouco mais crescido, e molhar-lhe as patinhas num copo de plástico com água (era verde!) até o bicho não se mexer e eu ficar sempre como a possível culpada da sua morte (a chinela era preta). Lembro-me de ti sentada, tão mais nova, tão mais vaidosa com o estojo de maquilhagem que desgracei no lava-loiças (debaixo de água) num tentativa vã de esconder os estragos anteriores, com a colher de pau na mão e a boca comprimida, a tentar obrigar-me a comer guisado com milho, e eu a chorar, e tu a falar na bela e no monstro, e eu a imaginá-la no quarto ao lado, aquele cheio de luz onde raramente entrávamos. Lembro-me de ti a levar para casa um cão que foi atropelado (outra coisa que nem qualquer mãe faria, mas tu fizeste) e a cuidar dele na marquise até ele estar bom, vir a correr um dia pelo corredor e derrubar-me à entrada na sala: caí para trás e bati com a cabeça no chão, o pai exigiu que o pusesses fora e assim foi – tinha nome, este cão? Lembro-me das geringonças que nos levavas para brincarmos, porque corrias as feiras todas, tivemos Tamagochis, tivemos yo-yos, tivemos tanta coisa que não posso recordar. Lembro-me de brincar no tapete do hall (que era quadrado a acompanhar a largura do espaço) e de fingir que nadava, como se só por ter aquela forma o tapete fosse uma piscina – ainda me recordo do cheiro do pó. É engraçado, mas as minhas memórias de infância são contigo. Não tenho ideia do que fazia na casa da minha avó, excepto de pequenos recortes que te dizem respeito, e sei que era com a minha avó que morava, mas de pouco me lembro. Lembro-me de ouvir longas explicações sobre porque é que não podia ir viver contigo. Lembro-me de ir embora contigo e com o David, que era como meu irmão gémeo, e irmos a combinar ao que é que íamos brincar quando chegássemos a casa. Lembro-me da bata azul que usavas, da colher de pau redonda, como uma concha, e do risco preto que fazias nos olhos. Lembro-me de gostares de ver o Tom & Jerry, de rires mais do que nós. Que mãe ri mais do que os filhos num desenho animado? Lembro-me de rebolares connosco no chão, lembro-me também da irresponsabilidade em tantas coisas e das coisas más, mas essas gosto de esquecer.
Quando penso nisto, recordo-me que uma vez disseste que, na tua juventude, sempre te disseram que nunca ias ser mãe. Entretanto, tiveste 5 filhos e chegaste onde estás hoje. E não tens nada da mãe convencional: não és escrava de horários, não os impões, não cozinhas bem, não nos/lhes vestiste/vestes collants quando está frio ou nos levaste a horas à escola. Às vezes não lanchávamos porque estavas a dormir, a minha avó ficaria doente se os netos não lanchassem à tarde. Foste a outra moeda, graças a ti, conheço um bocadinho das duas coisas. Graças a ti, espero ser uma boa mãe um dia, espero conseguir ter nota máxima no meu sonho de vida. Espero rebolar no chão com os miúdos, espero ser o polícia mau que lhes dá palmadas no rabo e, daí a nada, rir-me às gargalhadas deles e das suas caras amuadas. Sim mamã, lembro-me de te chamar mamã quando era pequena, espero que ainda haja desenhos animados bons como o Tom&Jerry e que eu me ria mais alto que os meus filhos, e que a minha alegria os contagie como a tua nos contagiava. Espero que não haja assuntos tabus e que eu consiga arranjar um gira-discos. Deixa-me deleitar-me a imaginar que, tal como eu, a minha Eva vai emergir da sala com o disco do Bob Marley na mão, Exodus, e vai pedir-me: - Mamã, mete este por favor.
Como se o tempo voltasse atrás, como se o mal do mundo não contaminasse tudo.
Amo-te pela diferença
(foto de família)
2 Maio 2010
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