16 de nov. de 2010

avenida liberdade - o sangue da cidade

Oiço palavras cantadas por alguém da minha margem sobre a capital do meu país. Desço a Rua de Santo António enquanto me deixo embalar. Reparo nas ruelas apertadas, nos diversos cheiros da cidade, pão quente, excrementos, verniz de mobiliário, urina, armazéns de revenda. Começo a ver, lá em baixo, a grande avenida que vai desembocar aos Restauradores. Por mim passam turistas perdidos, ciganos de ar melancólico, mendigos. Olho para o céu, azul povoado de núvens, e para as pedras, outrora livres, que agora pertencem à calçada. Penso na calçada tradicional portuguesa, no xisto e no calcário. Penso na nossa identidade. Penso nas vozes que oiço e atravesso a estrada a correr, agora lá em baixo. É então que ele diz que podemos imaginá-lo ali, na Avenida da sua Liberdade, e faz-me sentir não só no centro da cidade, mas no centro do mundo. Turistas à saída do metro dos Restauradores metem protector solar num bebé de meses que usa um chapéu branco. As pessoas que me ultrapassam por vezes cheiram mal, por vezes delas desprende-se um odor intenso a pele humana, a suor, a mendicidade, os bigodes brancos amarelecidos, o cabelo gorduroso sob um boné desbotado e as mãos grosseiras. Desvio-me da rota do ar que cortam à minha frente, ao caminhar. Passo por mais ciganos de peles morenas, saias compridas, aspecto deslocado. Passo por mais turistas, de chapéu, de rosto corado, que não sabem ao certo a onde dirigir o olhar. Oiço as palavras da música e penso que também eles podem considerar que sou dali, mas eu não sou de lá. Sob as galerias da principal avenida de Lisboa, a mais poluída, a que atinge temperaturas mais altas, a mais prestigiada, a Avenida das grandes marcas, dorme um sem-abrigo, e outro, e outro. Estão enegrecidos pela poluição da boulevard, estão escurecidos pelas altas temperaturas que, no inverno, não os tornam imunes ao frio. Já vi um homem morto sob os ulmeiros e outras árvores da Avenida, por entre memoriais e homenagens a mortos de guerras de outro século. E ele repete que não é de lá, e eu também não. Lisboa é sempre nova para mim, e o encanto é tão grande que desconfio ser este o meu recanto preferido num mundo de áreas infinitas e fronteiras infindáveis. Atravesso a estrada a correr entre a beleza do Avenida Palace, da estação do Rossio e do Teatro Nacional. Dou por mim no centro do Rossio, no centro da praça, sobre a calçada portuguesa, a ondular com ela, a saltitar, a voltar-me para trás para enquadrar o frontão do teatro, a saber que as fontes que me rodeiam são parisienses. Não sou daqui. Não sou daqui. Não sou de cá. Vou apanhar o barco para a minha margem, mas a magia de Lisboa conserva-se lá, eterna. E esta canção que oiço é o melhor hino à capital, não fosse ela assustadoramente realista.

29 Setembro 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário