16 de nov. de 2010

1.10.10

«Falta dois minutos pra as três da manhã de dia 1 de Outubro de 2010. Corro os corredores do Hospital Garcia de Orta, estou junto ao bloco de partos, à espera, há oito horas. À uma da manhã registaram-se 24 horas desde que as águas da parturiente rebentaram. Mexo o chocolate quente como se fosse café de qualidade. A máquina não tinha açúcar, o primeiro café soube a veneno. Quero que o novo dia comece doce. Sinto as olheiras aprofundarem-se. A máquina de snacks comeu 2€ ao futuro pai da criança, que a esmurrou de irritação. Depois comeu mais 1€ à futura avó materna da criança, que se limitou a reclamar educadamente. Depois comeu mais 2€ a um segurança, que garantiu não ser a primeira vez. As informações são vagas, repetem-se expressões como "está atrasada", ou "não tem dilatação suficiente". Desfolhamos o album de fotografias que a minha mãe trouxe, com fotografias do pai do bebé, fazemos votos que se lhe assemelhe, no tom dourado do cabelo, no esverdeado dos olhos e no branco da pele. Desfolhamos a dezena de ecografias do bebé, dos tempos em que ele media 6mm de comprimento e tinha 6 semanas de existência e parecia um distinto grãozinho de feijão. Agora é tão grande que a mãe não consegue trazê-lo para fora. Está há mais de vinte e quatro horas sem dormir e hoje, certamente, não dormirá. É dia 1 do 10 de 2010. 1 do 10 do 10. Há uma menina de 4 anos, em tudo invulgar, que chama pai ao avô, irmã à mãe, e que namora com o actor da principal da novela da noite. Ressinto-me, falta-me cafeína, falta-me uma folha, falta-me caneta, falta-me um cigarro. Pergunto-me como é que me arrasto para esperas sem um bom livro, sem papel, guardanapo, caneta ou batom.Alguém se dirige à sala de espera e diz "Ela foi levada para o bloco da cesariana, ele já nasceu". O meu irmão ouve em silêncio, o rosto não se altera, e no final diz "Parto estes gajos todos se isso for verdade". Tinham-lhe prometido que ia assistir ao parto, mas é a mãe da parturiente que, há mais de duas horas, desapareceu com a filha pelo bloco de partos. Disse que, por dez minutos, sem medicação, a filha desesperou: chorou, desistiu de ter um dia uma menina, implorou para que acabasse depressa. Médicos e enfermeiros marcham em grupo. Falam novamente nas tais expressões. Dizem que o nosso Rodrigo não nasce antes das 8h da manhã. O amigo do meu irmão, a quem me juntei no pátio a fumar um cigarro, tirou um café da máquina, elogiou-lhe o aspecto, disse parecer um "bitoque" e rimos os três. O choro de um recém-nascido percorre o corredor, mas não é o nosso. Não é o Rodrigo, outrora com 6mm. Finalmente compreendo porque se perscruta cada pormenor de um recém-nascido. Quero que ele seja perfeito: nos pulmões, nas feições, no coraçãozinho do tamanho do seu punho fechado, quero contar-lhe cada dedinho e quero cheirar-lhe a nuca e quero ver-lhe os olhinhos, turvos, a arregalarem-se para o mundo. Ele parece adivinhar o mundo, sabe que está melhor lá dentro, agarra-se à mãe como espero que um dia se agarre à vida. O pai arrasta-se de banco em banco, com os olhos inchados de sono e de cansaço. Acordou às 6h da madrugada anterior. São três e um quarto, as horas não passam. Três pessoas precipitam-se para o secretariado das informações. Quase durmo perante o copo de plástico vazio do chocolate quente. Cruzamos os braços, olhamos para os sapatos, ansiamos pelo melhor. Já me habituei ao odor intenso do hospital, à sua luz macilenta, às vozes na televisão que, em espanhol, anunciam que o presidente do Equador foi liberto pelas forças armadas. A dois metros de mim, oiço a minha mãe remexer as moedas no bolso das calças à procura de trocos para o café. Quer um terceiro café. Relembro-lhe que a máquina não têm açúcar, sugiro-lhe o chocolate quente. Ela aprova-o instantaneamente. Depois, apercebo-me que a vida voltou a fazer sentido nesse instante: estamos no caminho certo, vai tudo correr bem, é que... inesperadamente, conseguiu que o 1 do 10 do 10 começasse doce também para ela.» 1.10.10 3h

O Rodrigo nasceu às 9h10, com três gerações de mulheres a fazer suposições sobre ele nos bancos da sala de espera. O pai estava lá, de mão dada com a mãe. De seguida contou que se refugiou num canto a sós com ele quando lho puseram nas mãos. Mal esconde a felicidade, diz que não vai voltar a submetê-la àquele sofrimento, são novos, queriam outros filhos mais tarde mas ele aceita poupá-la. Primeiro traço de maturidade. Ela diz que não quer mais filhos, que nunca mais acabava, mas consta que quando o recebeu nos braços o encheu de beijos. Cá fora, a bisavó materna, a tia e a avó paterna recebem a mãe da parturiente, que sai primeiro de lágrimas nos olhos e anuncia "já está". Crivamo-la de perguntas. Quando o pai sai, ora diz que ele tem mãos e pés grandes, ora diz que é minúsculo. Descreve-o "é branco, amarelo e azul: branco na pele, amarelo no cabelo e azul nos olhos". Diz que está exausto, vai para casa dormir, volta às 14h. Sentamo-nos mais duas horas na sala de espera e, finalmente às onze, pousamos a vista pela primeira vez nele. É perfeito, o meu principezinho. Tal e qual imaginámos.
Pouco depois da chegada ao Hospital
Última chance de nascer em Setembro
1º Minuto do 1.10.10
Freakin'out
Os olhos a fecharem-se

Ainda não
Lágrimas da avó materna e um "já está"
 
(todas as fotos by celia)
Principezinho

1 10 10

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