16 de nov. de 2010

demência

«Ela e Fernando viviam em T, os vizinhos ouviam gritos rasgar a noite, mas apenas por uma vez chamaram a polícia e, assombrada, Letícia viu um dos amigos que costumava almoçar diariamente com Fernando entre os agentes. A desculpa improvisada de Fernando foi suficiente: ela falhara um degrau e caíra da escada sobre o braço, o mesmo que agora estava arroxeado. Gabriel fora lá a casa nessa noite, já ela estavachocada, petrificada, aterrorizada perante o que se estava a passar. A políciaà porta, a vizinha a repetir que a ouvira gritar «pára, por favor», e que isso não era o equivalente a uma pessoa a cair das escadas. Fernando e o polícia riam e faziam piadas sobre a interferência da vizinha e insinuações animadassobre ele bater à mulher, como se fosse absurdo – a vizinha estava a ser ridicularizada e, ocasionalmente, lançava olhares indignados a Letícia,i ncitando-a a confirmar, mas Letícia continuava imóvel, estupefacta. Sentadanum banco da cozinha com uma enfermeira a aplicar-lhe um unguento no inchaço do pulso, lamentou que ele não lhe tivesse batido mais. Lamentou que não lhetivesse rasgado os lábios com uma bofetada ou esmurrado o rosto ou que,simplesmente, lhe tivesse batido com algum objecto e ela tivesse um hematoma nacabeça impossível de disfarçar com histórias. Fitava-o com ódio, os seus olhos deviam faiscar naquele instante. Ponderava matá-lo, envenená-lo, começar aandar com uma faca permanentemente no bolso e assassiná-lo a sangue frio, se conseguisse, como ele parecia estar empenhado em fazer com ela aos poucos. A humilhação e a incredibilidade secaram-lhe as lágrimas nos olhos. Gabriel movimentou-se por entre os corpos que povoavam a sua casa, que deambulavam pelas suas paredes, rindo e bebendo cervejas oferecidas por Fernando para apaziguar os ânimos. Ajoelhou-se ao lado dela, que permanecia sentada no bancona mesma posição há minutos. A enfermeira soltou-lhe o braço. Ele quis perguntar-lhe se era uma ferida típica de quem se apoia na mão ao cair, mas não conseguiu fazê-lo com Fernando a alguns passos deles, a rir alto e a acusar avizinha de histeria perante o polícia seu amigo. Ao invés, perguntou baixo a Letícia:
- Caíste da escada?
Ela acenou afirmativamente, no estado de transe em que parecia ter mergulhado. Ele ficou com a impressão que, se tivesse feito a pergunta oposta, ela teria acenado afirmativamente do mesmo modo: «Ele bateu-te?». Mas não fora essa a pergunta que fizera, tinha uma resposta e não tinha certeza da realidade a que correspondia. Desviou o assunto, não podia crer que o seu melhor amigo tivesse realmente batido na mãeda própria filha. Perguntou-lhe baixo por Luz, apercebendo-se de que, fosse como fosse, ela estava perturbada, seria cair das escadas motivo para se estar perturbado?
- Está com outra vizinha no quarto dela, está a adormecê-la.
Os olhos dela estavam marejados de lágrimas, e ela sacudiu-as ao pôr-se de pé. Não queria olhar para a cara do marido, receava-o mas sentia-se segura devido à proximidade de tanta gente e ao aparato. Da próxima vez que chamassem a polícia, seria a segunda vez, o nome dele começaria a ser falado, e o polícia podia não ser seu amigo. Sim, ela tinha essa esperança. Que o prendessem e ela tivesse de passar os anos seguintes aterrorizada à espera do momento em que ele saísse da cadeia e viesse vingar-se, ou levar-lhe a filha. Era isso ou matá-lo, e ela não se julgava tão forte quanto isso, tão pouco capaz de viver com essa culpa. Sacudiu o braço que Gabriel lhe oferecia:
- Vais deitar-te? Queres ajuda?
- Não. Diz ao Fernando que fui dormir.
Porque não dizia ela, nem que fosse para reafirmar perante a polícia que a história da vizinha era ridícula? Sendo verdade, e ele via isso claramente, a polícia nunca acreditaria – estariam ali, a rir como estavam e a dar palmadas nas costas de Fernando, assim como a declarar-lhe o seu aborrecimento por terem vindo disturbá-lo a meio da noite, mas ordens eram ordens e, longe do respectivo chefe da esquadra, podiam fazer a festa que estavam a fazer com o seu amigo, injustamente acusado. Estavam a comportar-se como juízes, e haviam absolvido Fernando sem sequer o deter para interrogações. Gabriel viu-a subir para o quarto, passou o olhar pelas escadas e perguntou-se como cairia ela, com um tapete logo ao fundo das escadas, de modo a causar tamanho hematoma no pulso? E a vizinha, que dizia que ela implorara para alguém parar? Viu-a à porta, Isaura, como julgava ter ouvido, com as mãos nos bolsos da bata e a abanar negativamente a cabeça. Fernando ergueu-lhe a lata de cerveja e piscou-lhe o olho:
- Junte-se, vizinha! Tire isso da cabeça – ria, alto, com os polícias que praticamente faziam troça da mulher.
Depois veio o marido de Isaura, pô-la sob o braço e pediu desculpas a todos pela intromissão e imaginação fértil da mulher. Ficou o tempo suficiente para beber uma cerveja e foram os dois embora, com Isaura a lançar olhares fulminantes a Fernando e o marido a desculpá-la repetidamente. Isaura não se desculpou nem alterou uma vírgula na sua versão. Por fim ele próprio, cansado da viagem desde G até ali, acabou por aceitar uma cerveja e, nessa noite, ficou a dormir no sofá dos Vieira. A casa repousou no mais profundo silêncio. Com os olhos postos na escada e no luar que recebia através de um óculo na parede, perguntou-se uma e outra vez como Letícia caíra. No fim, antes de adormecer, já tinha quase a visão perfeita dessa queda, uma imagem onde não havia lugar para um Fernando violento e desconhecido.»

Demência

15 Agosto 2010

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