esta vontade de me ir daqui persegue-me, não é de hoje. não foi telha que me deu, é parede de pedra em mim. quero ir-me daqui, mas as âncoras são mais que muitas. há pouco a andreia falou-me que um dos seus sonhos seria ir morar na américa - thanks giving day, subúrbios, cultura americana. pus-me logo a imaginar um dia de acção de graças na américa, com elas a chegarem, a trazerem doces, a rirem enquanto eu sujava metade da mesa com pedaços de perú. depois a imagem cai por terra: não haveria tal coisa. não posso por as pessoas que me importam numa mala e levá-las comigo, ainda que só assim a minha vida fizesse algum sentido. se não estivessem lá, para mim não haveria subúrbios nem cultura americana, mas tardes perto do telefone e updates de programas como o skype para poder ver os rostos delas e ouvir as suas vozes diariamente, e a cada dia ia querer voltar para aqui, ainda que isto, este buraco, não seja nada. é um buraco somente porque, a cada ano que um ser se fixa no mesmo lugar, na minha opinião, ganha raízes, afunda-se mais. porque é que tem que existir a terra deste e a terra do outro? não pode ser a terra de todos? como cidadã do mundo, do planeta terra, serei carimbada de imigrante noutro país, assim como por vezes, inconscientemente, carimbo de imigrantes os de cá? será o meu país como a minha casa, e ponho esmero na escolha dos convidados? serei bem recebidas nas casas de outros? a minha mãe diz que vai, diz que no início do próximo ano pega nas malas e vai morar para a sombra da obra do Eiffel. Perguntei à minha irmã se quer ir com ela, ela disse no mesmo instante que sim, e reconheci nela o mesmo despreendimento fingido que tenho. perguntei-lhe, num acesso de carência que nunca antes lhe tinha mostrado, se tinha coragem de ir sem mim, sem a ana. ela reaforçou que sim. quis repreendê-la, dizer-lhe que é uma egoísta, que não se importa connosco, que, aos dez anos, já é uma calculista. depois percebi que fui eu que lhe ensinei isso, fui eu que lhe disse que se pusesse acima de todos, e ela citou-me isso «não és tu que dizes que nos devemos por sempre em primeiro lugar? que não se deve amar ninguém mais do que amamos a nós mesmos?». pus-me a pensar que eu não consegui cumprir isso, será que ela conseguiria? continuámos a andar e, a dada altura, ela disse «oh, eu digo que ia, mas não conseguia ir sem ti e sem a ana». e eu, aqui estou, a pensar que também não conseguia ir sem meter umas quantas coisas na mala. começava por por as minhas irmãs, depois, escondido, bem escondido, punha o daniel. depois, punha as minhas amigas, depois, fechava a mala. punha-me a pensar na avó, que queria levá-la também, e ao avô - punha-os lá e fechava a mala. voltava a abri-la e acabava por querer por o meu irmão david, a namorada e o "nosso" bebé, não exactamente por não conseguir viver sem eles, mas por achar que ele se sentiria só sem a família, que somos somente nós, irmãos, e o orgulho o impediria de dizer «não vão que vou sentir a vossa falta». depois, fechava a mala, para em seguida voltar a abri-la. punha aquela bola de resina, desaparecida há anos, se a encontrasse, que trouxe da tenência. depois, antes de fechar a mala, punha a fotografia da minha bisavó. depois, punha as árvores e as estrelas que vejo da janela à noite, quando me dá a melancolia e me meto a fumar a horas tardias. o meu caderno de objectivos de vida tinha de ir - ter uma ovelha, aprender italiano - para me lembrar que a vida me tem concedido algumas das coisas que queria, talvez as outras venham ter comigo um dia. punha também os meus livros favoritos, que enchem duas ou três caixas de cartão. depois, punha um punhado da terra de almada num bolso, um dos bolos da minha pastelaria favorita no outro. só aí partiria, com muitos acenos de despedida a muita gente que amo, e as lágrimas, não as conteria. só não levaria na mala o que não quisesse vir, ainda que fosse o que eu mais quereria levar. e, chegando ao meu destino, ainda com cadernos de objectivos, terra de almada, bolos da "loja do pão", bolas de resina, passaria os meus restantes dias a definhar de saudade da única coisa que teria ficado para trás, e que tanto amo, com os livros de lado e a água como simples h2o. mesmo que fumasse a horas tardias e que, sob a minha janela, o céu estivesse carregado com as estrelas de sempre.
é por isso que se aproximam duas estradas que divergem num bosque: e eu, em qual das duas viajarei, sem a minha preciosa mala, com a consciência de tudo o que ficaria para trás, irrecuperável?
2 Novembro 2010
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