Hoje fiz uma tarte de amoras; foi, sobretudo, um festim para os olhos ver os ingredientes dispostos na mesa: massa folhada, as amoras num recipiente quadrado, recentemente apanhadas por uma amiga da minha avó, açúcar, farinha, ovos, a tarteira, o meu pai, por uma vez companheiro de cozinha, por uma vez fizemos algo juntos, a estender a massa com uma garrafa de vinho, porque alega que a minha avó lhe partiu o rolo de cozinha no lombo quando era pequeno. A tarteira já forrada, as amoras sobre ela, a verter aquele suco de cor intensa que dá vontade de lamber mas que, sei, é amargo. Espirro sobre a tarte, só a minha avó vê - rimo-nos as duas. Misturo ingredientes e levo-os ao lume, o conteúdo da panela - farinha, gema de ovo, açúcar e leite - cheira-me a uma cola caseira que o meu avô fazia quando eu era pequena. Não é um aroma tentador, e receiei que não saísse bem. Reguei as amoras, já na cama de massa folhada, com aquela mistura que o meu pai mexeu com a varinha mágina - estava tão grossa, quando a deixei, que parecia um queijo. Oiço-o sussurrar «tem jeito, mas não tem queda para a cozinha», e vou sentar-me ao computador a repensar a contradição nesta afirmação. Daí a nada, toda a casa cheira a massa a cozer no forno. Quando a desformam, o creme escorre, a massa parte, as amoras parecem sangrar - tudo é amarelo e roxo, o mesmo cheiro a cola. Penso que não vou conseguir comê-la e, enquanto copio slides, e slides, e slides para o word, oiço uma grande conversa na cozinha sobre a tarte que fiz. O meu avô repete algumas vezes a mesma pergunta «é o quê?». A minha avó responde, imagino-a a debicar a tarte com a ponta do garfo «tarte de amoras, amanhã vou fazer uma com frango, já lhe perguntei como é». Abstenho-me de a corrigir - não será uma tarte, será uma quiche. Continuo a passar slides e oiço-a aconselhar o meu pai e o meu tio a separarem as amoras do recheio da tarte. Fazem-no. Depois, é a vez do meu tio repetir três vezes a mesma frase «isto com aquele recheio dos pastéis de nata deve ser mesmo bom». Quando ganho, finalmente, coragem para provar o meu próprio fiasco, apaixono-me pela tarte à primeira vista. É tão delicada, tem tanta personalidade, apesar de desfigurada, toda ela em amarelo e roxo... As amoras vão a sangrar até ao meu pires, escolho um garfo pequeno, vou dissecá-la, imagino o creme doce e as amoras que fui comendo enquanto a fazia amargas, quase ácidas. Não sei se é o amor que me cega, mas enquanto a como, declaro-a boa, declaro-a doce. Não compreendo que tenham tirado as amoras, as amoras são a vida desta confecção, é uma tarte de amoras, não é? Não consigo deixar de considerar uma tarde na cozinha, a fazer doces para não pensar, qualquer coisa de poético. Qualquer coisa de bom.
(desenho by celia)
8 Junho 2010
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