Ela estava encostada ao móvel da cozinha, com o microondas a funcionar atrás de si e as costas quase apoiadas na porta. Ouvia a música que vinha das colunas, lá dentro. A música tinha um tom de trágico, combinava com os cabelos desgrenhados dele e com a sua t-shirt comprida, amarrotada, larga. Deixou-se estar, ambos os braços caídos ao lado do corpo, acordara há pouco tempo, sabia que estava com péssima cara. No corredor, entre o ruído do microondas e o das colunas, ouvia o pai gritar ao telefone com a mãe – conhecia-o o suficiente para saber que receava demais que ela lhe fugisse do alcance para lhe gritar, pelo que devia estar realmente irritado. Dizia «já não te lembras que íamos aí jantar? Se não estiveres lá às oito e um quarto bem podes fugir. Estás a rir? Não te rias! Comes em qualquer lugar? Mas e os miúdos?!». À sua frente, o irmão, mais alto que ela, mas também menos desenvolvido em termos mentais, apoia as palmas das mãos no tampo branco da mesa da cozinha e inclina-se para ela. Ela olha-lhe para os olhos, é onde encontra os resquícios do passado, um pouco mais normal. E ele pergunta-lhe: «eu meto-me com as pessoas? Meto-me? Meto-me com as pessoas? – diz o nome dela – Achas que me meto com as pessoas?». Ela permanece impassível, é melhor não responder, já anteriormente disse coisas que não devia, precisamente àquela pessoa, a única que não pode compreender nem mudar. O estado de loucura geral, no entanto, combina com a música, com o telefonema, com o rapaz das perguntas repetidas, insistentes, com o toque do microondas a anunciar que terminou o seu serviço, com o cabelo revolto dela e com a t-shirt larga, de um verde feio, velha, e ainda com as suas olheiras e o seu estado de espírito. Pergunta-se, antes de tudo se desfazer – antes de o telefone ser pousado, antes de o microondas cair em silêncio, antes de a música terminar, antes de o irmão lhe virar as costas e ir fazer a mesma perguntas a outras pessoas, que gritam no quintal no abrigo que é a infância – pergunta-se… como é que aconteceu esse acidente do destino, essa coisa improvável, essa ínfima possibilidade entre tantos outros cenários mais plausíveis, que é o ser considerada normal.
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