4 de mai. de 2012

and I lost my trust


A tecla mais fácil de encontrar num teclado, mesmo de olhos fechados, é o enter. É tão fácil quanto tactear na mesa-de-cabeceira e encontrar o telemóvel de imediato. Tão familiar quanto isso. Foi-me difícil encontrar o enter num escuro absoluto, mas encontrei e acendi a luz. Depois, infinitamente mais difícil, foi encontrar o delete. Mas eu encontrei, e apaguei a luz e fechei a porta quando saí. Levei as malas e os livros. Não sou uma pessoa fácil, eu sei disso. Tenho princípios diferentes. Meio abrupta, meio rude. Despejo uma dose de mim que nem todos conseguem digerir à primeira. Correndo o risco de ser injusta, ou snob, até gosto disso. Só me interessam aqueles de estômago forte – e algum humor irónico – capazes de me digerir de enfiada. Tenho meios diferentes. Não creio que seja fácil conviver comigo, não sou uma pessoa previsível, confesso que tiro algum prazer de ver queixos caídos. Isto até podia ser engraçado – é-o, geralmente – porque estou rodeada das pessoas que amo e que me querem bem igualmente, e esses já me digeriram e digerem-me diariamente. Mas, simultaneamente, não creio que tenham certezas, a cem por cento, de que dose de mim virá nesse dia. Tanto rio como choro. Sou como uma escarpa meio aguçada. Os meus fins não são os habituais. Podem ao menos acreditar, sem reservas, que não tenho – não, não teria coragem de cumprir pragas lançadas em momentos de raiva ou frustração – segundas intenções ou maldades em vista, em momento algum? Quando os meus punhos acertam em alguém, é porque precisei de espaço para me defender. Precisei, também eu, de espaço para digerir. E esta característica cria um mal-entendido que me tem causado dissabores: eu não sou uma rocha indestrutível, e se me baterem com força eu desfaço-me em pedrinhas e lá vou com a erosão. Não fiquem a rir-se a pensar que me materializo de novo em pedra, apanhem-me, reúnam-me, antes que as ondas e o vento e o sol me danifiquem...


 I’ll see you soon… Esta obra-prima dos Coldplay faz tanto sentido agora… Sou impaciente demais. Quis que a vida viesse, alegrias e tristezas, aos pontapés ao meu redor. Quis que ela acontecesse de rompante. Tudo ou nada. Eu sempre soube que era uma lição a aprender nesta vida – com o BI nº tal. Com um metro e meio e um peso ridículo. A paciência, esse monstro de lentidão e desperdício temporal. A vida, contudo, não deposita, nos ombros de ninguém, um fardo maior do que aquele que o talhou para suportar. Lembrem-se disso. Eu lembro-me com frequência. Mas é um facto de que virão muitos momentos de impotência ao longo da vida. Escolhas difíceis. Por motivos diversos – só meus – frequentemente magoarei aqueles a quem mais quero proteger. Digo eu que magoo, porque tenho a pretensão de ter essa importância para eles. O amor, essa merda destrutiva, destruiu-me. Desde que era um pequeno barquinho a remos, a flutuar perto da costa com âncoras sólidas, veio em ondas e virou-me. Tantos anos convivi com ele (o amor) como amigo, como salvação… tantas vezes julguei que o amor seria o meu guia através da vida, que ver-me assim desprovida do seu conceito original, aquele pelo qual me guiei, me entonteceu. Desfez-me, em parte. Renasceu-me de outro lado. Aprendi que a vida era mais do que aquilo que pensei dela. É mais do que querermos dá-la por outrem – assim sem mais nem menos, sem um inquérito ou uma avaliação profunda. É mais do que não nos conhecermos valor algum se não condicionado pela nossa própria capacidade de pôr a nossa vida ao dispor de outra, de salvá-la, de levar murros e tiros por ela. Aos olhos de outrem, que espectáculo patético de falta de valor. 


Foi uma surpresa descobrir que tenho algum talento para atrair as pessoas para o meu lado. Novamente a pretensão… mas e se for verdade? Se, realmente, atraio para mim quem precisa de rir, de se distrair, de saber que alguém não receia juízos de fora nem más primeiras impressões? E se realmente reuni à minha volta pessoas que sorriem, noite dentro, tarde fora, porque é esse o meu dom, mais do que a escrita? Gosto de ouvir os risos alheios, faz-me sentir útil. Algum propósito tinha de ter. Une as almas numa harmonia segura, plena de confiança temporária e propícia a cegueiras futuras. Mas agradável de digerir...


O que aprendi, recentemente na vida, é que frequentemente somos privados de nos sentar a uma mesa de café com todos aqueles que são essenciais ao nosso próprio riso. Não voltarás a rir dos meus disparates? Não voltaremos a rir juntos, a trocar um olhar e a ler os olhos do outro com um encolher dos ombros? Não voltaremos a ficar em silêncio solene quando o assunto se afigura sério, nem a quebrar a crispação com uma piada fácil que mete o outro a sorrir? Não precisávamos de falar, sequer... Isto deve ser único, não? Nem isso era necessário. Eu sabia exactamente aquilo em que estavas a pensar. E tu comprovava-lo. Também me leste as ideias algumas vezes, mais do que agora gostaria que tivesse acontecido. Sabias tudo de mim, da minha alma nua permanentemente perante ti. Provavelmente foi isso que te aborreceu. Um livro grande e complexo, indecifrável em certos trechos e desconcertantemente claro noutros. Parágrafos em latim arcaico, outros em português corrente. Abri-te demasiadas secções. Disse-to tantas vezes… demasiadas vezes… devia ter-me calado, devia ter guardado para mim o facto de a tua vida me importar mais do que a minha própria. Mas não sou boa estratega. Não sou adepta de jogos de xadrez… nem ao computador, no nível de principiante, consigo ganhar. Mas ainda assim julguei que havia, algures,  um quebra-cabeças que pudesse resolver e que colocasse tudo nos sítios certos. Eu, a crente. 


Quando alguém nos aperta com o cotovelo pelo pescoço, confiamos que sabe o que está a fazer - por muito que esteja apostado em intimidar-nos nesse momento. A dado momento há-de soltar-nos. Sofrerá consequências se não nos soltar. Quando nos vir a arroxear, a sufocar, a perder a voz, há-de soltar-nos. Confiamos que a dor, o desconforto, só são suportáveis até certo ponto. E quem nos aperta sabe-o. E, mais cedo ou mais tarde, o cotovelo afrouxa e o ar volta a inundar-nos os pulmões. Era (quase) certo que assim seria. E a vida? E se a vida for um acaso? Já suportei dor suficiente para sufocar. Já morri e renasci n vezes. E se a vida for, a certo ponto, um joelho sobre o nosso peito, a esmagá-lo e a impedir-nos de respirar, e não souber o que fazE não souber que o peso é demasiadoE não souber que não vamos sobreviver? E agora o lugar-comum: e se, afinal, nada fizer sentido porque a vida, o mundo, deus, que seja, não tem consciência de lógica alguma funcional? E se as coisas acontecem por acontecer e, no fim, ninguém dá lições a ninguém, ninguém aprende nada com ninguém, ninguém sente a falta de ninguém, ninguém ganha nada em jogar seguro, assim como ninguém ganha nada em jogar sujo? E se a soma total for sempre zero e o saldo nunca puder ser positivo? E se este for o final da história e as pontas ficaram soltas? Perguntas, dúvidas suficientes para sustentar toda uma tese sobre o absurdo das coisas? Da vida? Das histórias pessoais? A porta tem sete trancas a mantê-la unida à ombreira e as explicações nunca vieram. A lógica nunca esteve presente, foi presença ausente a cada novo capítulo. Nem sequer compareceu ao epílogo. E se isto é tudo o que tiraremos da existência, um grande ponto de interrogação?


E se eu só faço realmente sentido assim? Consciente do que é tristeza, vazio e sofrimento, para que obrigue os outros a rir à noção de que podem estar tão apagados quanto eu? Tão a precisar de varrer ideias da cabeça quanto eu? E se eu só funcionar assim, a vida inteira, porque só assim aprendi e só assim posso passar alguma aprendizagem? Calma, isto já é assumir que as coisas sabem o que fazem e que têm algum propósito.


Nada fez nunca tanto sentido quanto um cigarro a consumir-se a si próprio na atmosfera nocturna. Diziam que a lua hoje estaria maior – não notei diferença. Foi só a minha lua de sempre, a pairar sobre a minha cabeça… Era só Coldplay e as velhas palavras de sempre ao meu ouvido, meus e de mais ninguém. Um silêncio absoluto no mundo em redor. E só assim eu posso mergulhar em mim e manter o equilíbrio. A prostração. O comodismo de encolher os ombros perante o inevitável. A coragem de galgar o que pode ser vencido. 


E se, só magoando, puder evitar ser novamente magoada? E se, só mantendo quem mais amo  – e quem, consequentemente, mais estaria em posição de me destruir novamente no futuro – longe, é que posso sobreviver vida fora, sem contemplar águas pardas de rios nem braços de pedra cinquentenários? E se tudo foi nada, e eu um nada maior no meio de tudo?


E se as pessoas não foram criadas separadas para se juntar, mas juntas para se despegar? Para se soltar, para se libertar, para percorrer caminhos existenciais a sós, consigo mesmas, sem juízos nem influências nem âncoras físicas e o mundo como palco da viagem de aprendizagem pessoal? Uma pessoa é uma coisa tão limitada que, por vezes, toma a forma de uma rua. De uma cidade. De um livro numa língua estrangeira. De um cobertor velho cor de salmão. De uma camisola cor-de-rosa às bolinhas brancas. 


O que me assusta é o quanto mudei. O quanto era apegada à proximidade. O quanto aprecio a distância. O quanto quero mantê-la. O quanto sofro com os oceanos entre duas almas e o quanto respiro fundo por estar do outro lado. O quanto me custou atravessar o oceano para lhe ir juntar, e o mais ainda que me custou ser lá mal recebida. E como sei que, desta vez, a viagem teria de ser no sentido inverso, queimei a carta da espera. O homem atado. A viagem teria de ser no sentido inverso, e sem certezas de que o outrora homem atado estivesse à espera (e atado). A viagem teria de ser com todos os naufrágios que sofri pelo caminho a molharem outro rosto. Com outras ilhas de canibais a cobiçarem outra carne. Com outras vozes a falar em descrença e a rir de troça. Outro cenário a quebrar a fealdade que, creio, é irreparável. Agora, a viagem teria de ser da montanha ao Maomé. O Maomé nunca conseguiu subir a montanha. A montanha não quis que lhe chegassem ao cume. Estou estupefacta com o quanto determinada hora me puxa a determinado lugar e com o quanto fujo desse lugar quando essa hora chega. Tudo ou nada. Mas um nada tranquilo, digno, respirável. Eterno.

Perdi-me, ou encontrei-me finalmente?
So maybe, just maybe, I’ll see you soon.
Because oh, I lost my trust.





NOTA: Além desde blogue, administro outros dois. Um deles criado por engano. Hoje decidi, finalmente, ir à ajuda do blogger descobrir como apagá-lo. Por engano, apaguei este e por um instante caiu-me tudo. Tudo, literalmente. Muitos destes textos não tem backup. Só me vinha à ideia a mensagem: ARE YOU ABSOLUTELY SURE THAT YOU WANT TO DELETE THIS BLOG? E a minha determinação quando cliquei SIM. E depois vejo qual tinha apagado, e ia tendo uma apoplexia. E então diz, em baixo: se quiser recuperá-lo, pode fazê-lo por um período limitado de tempo logo após a eliminação. Operou-se um milagre aqui... e logo neste post. Se é uma lição sobre não apagar de olhos fechados ou sobre recuperar é que não sei. Mas isto tinha de vir documentado, para me recordar que ia atirar fora uma parte importante da minha vida, aqui tão bem registada.

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