Às vezes (frequentemente, aliás), pergunto-me se a vida é só isto. Este marasmo, esta corrida lenta de caracóis, com os olhos postos em lebres, lá adiante. Cada um deve traçar o seu objectivo, se é que é claro para todos que se deve ter um, como me parece claro a mim. A ausência total desde objectivo de vida deve perfazer um estado de deslocamento total. Alguém que não acredite numa meta, num sentido de existência, vive do quê e para quê? Simplesmente não questiona o seu papel naquilo que apelido de «criação»? Talvez seja de facto assim, a lógica das coisas – vir porque não passamos da ninhada indesejada de uma gata, mas esta gata seria a humanidade. Viemos somente porque tínhamos que vir? Porque a gata, e o gato, não tinham como fugir à sua natureza? Viemos sem saber se teríamos lugar no mundo, se seriamos amados e adoptados, ou, talvez, afogados num balde no recanto mais discreto de um quintal? Quem sabe seja o mundo que nos afoga, dia a dia. A mim, é a falta de respostas que me afoga. Custa-me a crer que vim só por vir. Que toda a conjuntura matemática que se pôs de acordo para me ter aqui, significa absolutamente nada, que não uma simples equação complexa. Tanto eu, como todos os que por cá vagueamos, ganhámos uma luta pela existência e, desde aí, temos ganho constantemente a luta pela sobrevivência. Não sou, contudo, egocêntrica ao ponto de julgar que a minha existência é uma estrela luminosa por entre as outras, ou que o Homem, como espécie (e ultimamente tenho tido demasiadas referências ao facto de sermos, simplesmente, outro animal à face da terra, embora um que se impõe e reina sobre todos) – Animal, Cordato, Mamífero, Primata, Hominídeo, Sapiens – é o centro do universo ou criação estratégica de um organismo abstracto e místico a quem tantos chamam deus. Ocorre-me que, talvez, diferença maior do que a sermos inteligentes, perante os animais, o que realmente diferencia o homem de um cão é o seu objectivo de vida. Enquanto o cão tem uma certa percentagem de inteligência, ou capacidade para a desenvolver, duvido que a evolução algum dia lhe traga a capacidade de estabelecer objectivos, de pensar a longo prazo, de se contemplar como um ser temporal, com passado, presente e futuro. Com isto não querendo dizer que, alguém sem objectivos, seja uma vaca. No entanto, parece-me a mim que esta sociedade onde nos deslocamos está a afastar-nos a todos do nosso objectivo superior – não posso crer, de forma alguma, que a vida seja só isto – nascer, chuchar, experimentar andarilhos, ir para uma creche e fazer amigos, festejar aniversários, ir para a escola, tirar um curso superior, casar, ter filhos, ser avô, morrer. Não, o lado bom da vida não podem ser só recompensas financeiras, noites com os amigos à beira mar ou promoções na carreira e tardes nos centros comerciais. Assim como o lado mau não pode ser só dificuldades financeiras e problemas com o estar-se demasiado gordo/magro. Acredito piamente que haja algo de transversal à vida de TODO e QUALQUER ser da espécie – Animal, Cordato, Mamífero, Primata, Hominídeo, Sapiens – e com isto digo que algo de intemporal liga esta espécie, não só a memória evolutiva dos finais de tarde nas selvas ou da utilização do polegar ou da inutilidade dos sisos para rasgar carne crua ou da apêndice para ajudar a processar a alimentação dos tempos remotos. Não, algo menos instintivo e mais de ser, mais racional. Algo como a mesma alma em vários corpos ou um propósito comum – algo que faça sentido, simultaneamente, para um Homo Sapiens que acabou de aprender a lidar com o fogo e um Homo Sapiens Sapiens que acabou de tirar um curso de informática. Como que o mesmo disco rígido em cada, só que invisível, mas imutável, formatado a cada nova existência, mas com fragmentos da anterior.
Não posso crer que a vida seja só isto, ou que a minha vá ser só isto, sempre – noites solitárias, a juventude a esvair-se, a pele mais áspera, as rugas a aprofundarem-se ao redor dos olhos, as mãos a envelhecer, o corpo a decompor-se, lentamente, sim, acho que decompor-se é a palavra certa, porque a cada instante que vivemos ele envelhece e dá um novo passo em direcção ao seu destino final – a ausência de vida. E ainda hoje, na aula de Ética, alguém disse «fumar mata», ao que se respondeu, sabiamente «viver mata». E é por viver, matar, que a vida não pode ter o curso pouco prático de, no máximo dos máximos, 120 anos. Isso é pouco para uma espécie, é nada para a evolução, é zero em termos de aprendizagem existencial. O que é que fazemos cá, afinal, se não estamos programados para aprender nada se não a comer de talheres e a fazer login no facebook?
Por favor, por favor, consciência geral da humanidade, o «deus» dos religiosos, não deixes que a vida seja só isto. O meu objectivo de vida está bem traçado, soa simples mas é complexo demais, embora fácil de atingir – é ser feliz. Para isso, é preciso que eu sinta que a vida valha a pena por mais do que um contrato com uma empresa. Tem que haver um encontro com as entidades originais, uma aproximação à natureza, um banho de instinto e saber inato a guiar-me por entre os futuros dias deste meu corpo. No final, têm que haver respostas, ainda que eu passe a vida inteira a procurá-las no espaço físico, espero que, ao menos no vácuo, as encontre um dia. No entre vidas, embora queira, mais que tudo, que esta seja a última. Embora ache, sinceramente, que esta é a minha última. Não porque aprendi tudo o que o budismo e psiquiatras como Ian Stevenson pressupõem que se deve aprender – mas porque, como objectivo final, que faz sentido para mim e que talvez tenha criado, porque acredito também que o nosso papel é criar qualquer coisa, nem que sejam as nossas próprias vontades, fundamentadas, e verdades pessoais, que o objectivo final, não da minha vida, mas desta experiência como tartaruga num aquário chamado Terra, é desprender-me de tudo. Até porque o Homem, no instante em que começou a agarrar as coisas com as mãos, nunca mais as largou. Tornou tudo seu: as pedras para casas, as árvores para sombra, os solos para cereais, os animais para alimento, as estrelas para adoração e os metais para terem qualquer coisa que valorizar. Desde aí, transformou tudo, das comunidades fez civilizações e, entretanto, fala-se em sociedades. Tem sido tudo «nosso», entretanto, e a cada vida o Homem é incitado a reclamar para si parte do que se converteu em bem, ou em criar novos bens dignos de serem disputados e desejados – sejam ipods, sejam ilhas no Pacífico. Tudo deve ter o seu dono e, no final das contas, o Homem é o dono de tudo. Talvez o objectivo seja, realmente, esse – parar de procurar valor fora de nós próprios, mas cá dentro. No entanto, a cada geração, o mundo evolui num sentido que só nos faz olhar para o exterior, para aquilo dos arredores que possa interessar-nos e, daí, a exigir que nos seja atribuído aquilo que queremos – sob o estigma do bem-estar, da realização pessoal, dos objectivos de vida. A verdade, é que também eu jogo no euromilhões. No entanto, ser desprendido é saber que algo acima de todo este pandemónio tem mais valor. Não é ser como aquele que se queria intitular o homem mais desprendido do mundo, porque só tinha umas cuecas, das quais era inseparável e pelas quais enfrentaria incêndios para as conservar intactas, mas é ser como aquele que, vendo a sua mansão ser consumida pelas chamas, continua a sua meditação tranquilamente. E é isso, por entre labaredas, terramotos, histerismos sociais, os quais oiço, por vezes até concordo, mas acabam por não significar mais do que o que são – histerismos sociais – e por entre assassinatos, milhões a morrer à fome, má gestão, seja o que for que nos desabe em cima, eu continuo a meditar sobre que raio é isto que sou eu, e que raio que é isto que sou eu faz aqui. E, se tiver que escolher entre deixar o mp3 na estação, porque me caiu na correria para o comboio, ou esperar vinte minutos pelo próximo comboio, eu escolherei sempre o meu tempo, irreversível. E, por tudo isto, e porque não daria a vida por cuecas algumas, e até porque não há caixa de recordações que mantenha, e porque os meus computadores são, provavelmente, feitos de plástico, e as minhas roupas não passam de trapos, e os meus livros estão guardados na minha memória, embora sejam aquilo a que me apego mais – mas não totalmente – que digo que não me há nada essencial, se não o ar. Se não aquele que amo. E, libertando-me desse amor, liberto-me de tudo. E, liberta de tudo, sou só eu, desprendida. E, eu só, desprendida, creio que esta é a minha última vida, porque aprendi a lição do desprendimento, e aprendi-a nesta vida, é algo que não trouxe de trás, e de que me adiantaria voltar ao mundo, sem desejo de ligação? E, mais do que recear que houvesse mais algo por aprender, há a certeza de que, ao contrário de tantos a que a pergunta pudesse ser feita, partindo do princípio de que se acreditasse em várias vidas – queres voltar? -Eu diria que não. Não, não quero voltar, não me ocorre nada para fazer por cá, o que não me consagra perfeita, mas também não me parece que a perfeição fosse o objectivo; não acredito que o universo trace caminhos que não sejam exequíveis e que levem a metas inalcançáveis. E não receio a morte, nada disso me causa angústia, mas inspira-me paz, descanso, harmonia final. Desprendi-me, porque larguei mão da última coisa que se pode largar a mão: da vida. E, depois disso, não há motivo pelo qual voltar.
É por isso que quero tanto ser feliz nesta vida. É a última, por muito ridículo que soe, por muito neurótica que pareça, por muito esquisitóide que me consagre com este género de afirmação, é algo que me é tão natural sentir quanto respirar – parece-me tão certo quanto o facto de pensar, logo, existir.
6.5.11; 5:29
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