20 de jun. de 2011

poucochinho

Hoje descobri, nesta palavra tão portuguesa, o «poucochinho», a razão dos défices humanos e sociais. Talvez seja demasiado ambicioso falar nestes termos - quem sou eu para descobrir o que quer que seja, eu, que nunca descobri nada que me dissesse somente respeito a mim, quanto mais aos outros animais e às outras casas. Parece-me, reformulando, parece-me, que o «poucochinho», é a razão de muitos males. Dos meus, seguramente, é. 

Há dias, descobri que a minha avó me tem «poucochinho» amor. Eu sabia que as barreiras sociais, culturais e religiosas iriam impor-se, como barreiras instransponíveis - ditando-lhe o que deve ser o amor, e não o que o amor é, porque o amor não é indígena domesticado nem cristianizado, mas selvagem nato, de cabelos ao vento e pouca roupa no corpo.

Atormentada com o filme que vi sobre a eutanásia, perguntei-me «e se fosse eu?». Ao contrário do grosso da população, que acha que os males nunca lhes podem ocorrer eu, dada a imginar, ponho-me a experimentar os papéis principais das tragédias e dos triunfos. E se, com esta consciência de que o tempo de que disponho é poucochinho, sofresse um acidente aos vinte e cinco anos e ficasse presa a uma cama, sem hipótese que fosse de decidir sobre a minha vida e a minha morte por não ter a) mãos com que fazê-lo, b) alguém que me amasse suficiente para o fazer por mim?

Oiço Ramón Sampedro dizer, sob a voz de Javier Bardem (Mar Adentro, 2010), que a pessoa que me amar é que me vai ajudar. Pois claro que é, não tocou nenhum sino na minha subconsciência. Eu sempre disse que amava como quem tira a vida a quem sofre mas serei amada do mesmo modo?

Esgueirei-me, descalça, até ao quarto da minha avó. Em momentos que suspeito que se fará história, na minha vida, que a partir daí não mais serei a mesma, não mais terei a consciência do tempo e do espaço que tenho, tomo especial atenção aos pormenores. Ela estava sozinha, no quarto dela, deitada sobre a cama feita, com a luz a incidir no quarto através das frestas da persiana. Deitei-me atrás dela, soube que, apesar de ter o rosto escondido sob o braço, estava consciente da minha presença. «O que foi?», diz, e eu, com receava que a voz se quebrasse, olhei para o espelho do guarda-fato dela, onde surgiam apenas as nossas pernas. As dela flectidas, em repouso, as minhas esticadas e nuas, em tensão sob o meu vestido favorito de andar por casa. «Se eu sofresse um acidente e ficasse sem me poder mexer» - há que simplificar, para quê dizer tetraplégica? Se quero a resposta que busco, tenho que colocar perguntas compreensíveis «e quisesse muito morrer, tinhas coragem de me ajudar?». «Não fales nessas coisas que deusnossosenhor castiga». Pronto, se deus entra na equação pela porta, sou obrigada (eu e a lógica) a sair pela janela. «Diz lá, se eu não pudesse mexer se não a cabeça, e falasse, e te pedisse para me ajudares a morrer, ajudavas ou não?». «Claro que não, estás parva?». Não me contive antes de me levantar do lado dela «Sabia que não me tinhas assim tanto amor».

Devia despi-lo, se o tem. Devia desnudá-lo de preconceitos e receios e normas - da própria consciência e sentido de certo e errado, se necessário. Devia deixá-lo ser aquilo que ele deve ser - ouro sem mão humana, incrustado em pedra aurífera, tosco, mas autêntico. Dias depois começo a lidar com as consequências da falta de paz que esta resposta suscitou. Sonho que tenho uma trombose, em casa. Ultimamente não me tenho sentido bem, há poucos meses o coração começou a falhar batidas e sinto-me cansada. Um cigarro é suficiente para a respiração se arrastar ruidosamente durante a noite. Claro que não é nenhuma doença grave - como de acordo com os princípios do romantismo (XIX) seria bonito que fosse - e não quero ser ingrata quanto ao tempo de que ainda posso dispor, (60, 70 anos, quem sabe) mas os males têm-se acumulando e há pessoas a sofrer males do género na minha idade. Vou tentar por as minhas tendências hipocondríacas de lado, de modo a sobrar só aquilo que me dói, e não o que penso que possa doer-me. Mas o certo, é que estou a morrer. O certo é que, batam neste texto os olhos que baterem, esses mesmos olhos estão a morrer. Estamos todos, e eu pergunto-me como acontecerá, e até decidi, há muito, que se puder, serei eu a escolher o momento, num futuro remoto, quando viver já não me atraia, já não pareça ter nada para oferecer-me. Isto para dizer que sonhei que tinha uma trombose e a boca distorcia-se dolorosamente - ainda o sinto, foi a noite passada que o sonhei - e, na minha cabeça, havia uma veia a latejar - e falava com dificuldade, enrolada, e mal mexia um dos braços, e dizia à minha avó que ligasse para as urgências. Ela dizia para eu parar com a brincadeira, e eu tomava o telefone e tentava falar, em esforço, e às tantas desmanchava-me em lágrimas, a pedir ajuda, e era aí que ela entendia e me tirava o telefone das mãos e falava por mim. Eu estendia-me sobre a mesa da cozinha, a cabeça no material fresco, deixava que mais lágrimas caissem e pedia ao destino para que, se fosse tarde demais para eu voltar a mexer-me bem, que me levasse. Por favor, leva-me, não aguento mais abstinências. Já me abstenho de amor, de saúde, de dinheiro, não me abstenham de fazer viagens de dois metros, da minha mão à vossa. E apagava-me. Não sei o que se seguia, porque o sonho apagou-se também. Os meus olhos fechavam-se devagar, uma sonolência calmante tomava-me, e o meu último pensamento era o de não querer acordar se o meu corpo tivesse morrido ao redor da minha alma. Não, aprisionada não. E assim acordei, aterrorizada, com a certeza de que, se me acontecer uma desgraça semelhante, bem posso definhar sem dignidade na cama, porque não há ninguém que me ame o suficiente para ma devolver. A essas pessoas, que achassem que o meu dever era ficar, saibam que, se tal me acontecer, a cada vez que pousar os olhos em vocês, se puder fazê-lo, estarei a implorar para partir, e a condenar-vos por não me amarem o suficiente. Quando chegar lá acima, o vosso deus, que para mim é a sabedoria final das coisas, há-de perguntar-me se serei capaz de perdoar-vos uma dor pior do que o que quer que fosse que me tivesse metido de cama. E eu direi que não, que não perdoo cobardias.

E, só para que saibam, àqueles que amo prometo ajuda no que quer que seja, a viver, ou a desviver, se viver se tiver tornado intolerável para vocês. O amor é uma coisa que se aprende, e eu tenho aprendido a amar melhor. Sem egoísmos. Deixar-te voar se queres ir, abrir-te os braços quando voltares. Deixar-te cair de joelhos, se insistes nesse caminho, e receber-te de braços cruzados e um sorriso de canto de lábios. Dar-te conselhos mas não imposições. Ficar feliz se os acatares, mas não me desiludir se optares pelos teus próprios avisos e chamamentos. Eu amar-vos-ia o suficiente para vos garantir alívio, e não considerem que vos amaria menos por isso, só porque seria capaz de vos mandar para um sítio onde não teria certezas se voltaríamos a estar juntos. Mas, para quem ama realmente, não é possível não estar juntos. Eu, pelo menos, vivo metade em mim e metade onde o outro está. Estares aqui significa, simplesmente, que todos os fragmentos da minha alma estão reunidos num mesmo espaço.

Não sei amar poucochinho.
Dá-nos jeito ter ao lado alguém disposto a trocar a sua liberdade pelo nosso alívio.
Menos do que isso, não poderei nunca aceitar.

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