Finalmente estou a tornar-me aquilo que sempre deveria ter sido. Longe
dos sonhos da infância, das infantilidades. A alquimia em mim mistura
tolerância com firmeza, irresponsabilidade com sorte, falhanços com alegria
natural. Gosto que gostem de mim, coisa que não fazia questão anteriormente.
Tinha receio que se prendessem a mim, que me prendessem a
si. Agora flutuo nessas correntes, afrouxo-as e cinjo-as conforme me apetece.
Nunca fui tão fiel a mim mesma - ao que quero, aonde vou, o que faço. Nunca ri
tanto e tão genuinamente. Nunca estive tão completa, tão preenchida, tão
activa. Nunca tive tanto orgulho em mim mesma, na C. que sai da cama às 06:00,
toma banho, engole um pequeno-almoço à pressa, corre avenida acima até ao
banco, não esmurra a máquina que não funciona e corre avenida abaixo ao sabor
da The Arrival of the Birds, da Cinematic Orchestra. Tenho uma
simpatia nova por esta jovem mulher - de cabelo indomável, Jesus! - que agora
sou, esta mulher que mete o instrutor de condução de bom humor às sete da
manhã, e que descobre que talvez conduza melhor do que muitos homens. Estou
satisfeita por ter os pés na terra quando nunca fui tão admirada - nunca tive
tantas atenções masculinas e, curiosamente, nunca estive tão bem sozinha. Sem
ânsias, sem vontade de partilhar seja o que for com o sexo oposto. Gosto,
sim, gosto muito, desta rapariga de 22 anos que pede um pão com manteiga ao
balcão daquela que considera a melhor pastelaria de Almada - tartelettes de
limão, tarte de lima, fofo de chocolate, éclairs, donuts,
semifrio de bolacha, queijadas... - Um pão com manteiga, por favor. Nunca tive a vida tão excepcionalmente
organizada.
E tenho passeado tanto e descoberto
tantas coisas, convivido tanto com pessoas magníficas, notáveis, amorosas, de
alma e coração puros... Julguei que essas se tivessem esgotado, apenas porque
todas as que julguei de bem resvalaram para o outro lado. As pessoas são capazes de tanta coisa... São capazes de sorrir
àqueles que, sabem de antemão, se preparam para abocanhar... Lobos, o mundo
está cheio de lobos. Mentirosos, manipuladores, dissimulados. Mas os castelos
de cartas hão de cair e eu, nas entrelinhas, estou tomada de paz. As minha
cartas repousam, tranquilamente, na sua caixinha de madeira. Respeito-as
demasiado para lhes fazer mais perguntas agora que já me deram todas as
respostas. A minha carta, a cada vez que a minha avó perguntava pelo meu futuro
ou que eu mesma o fazia, era a XVII - A
Estrela. Entrega, amor puro, desapego
e, no inverso, tristeza. A cada vez
que alguém perguntou, a respeito da minha felicidade futura, ou eu mesma o indaguei, a Estrela virou-se e fitou-me. Tristeza. Agora deixou de sair essa carta, tem saído outra a meu respeito.
A tristeza já passou. Não vou voltar a perguntar se serei feliz, pelo simples
motivo que não se incomoda as cartas com perguntas cuja resposta já conhecemos.
E eu sei, oh se sei, a resposta a
essa pergunta.
Eu
serei estupidamente feliz, porque o bater das minhas asas mudou abruptamente de
rumo... a minha carta nova é a III - A
Imperatriz, força, realização, sabedoria, beleza (interior, espero). Gosto
do facto de, nos baralhos tradicionais, ser representada com uma serpente - o
meu animal do zodíaco chinês, a própria personificação animal da mulher. No meu
baralho das Mil e Uma Noites, a carta é
qualquer coisa de majestosa. E eu continuo a acreditar em brilhos ocultos, sob
o manto exterior...
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