3 de out. de 2012

#Epifânia - 2

05:30 - Montegordo
  
Entrou no carro sem olhar para trás e ajeitou-se no banco. Passageira, no carro e na vida. Seria levada de regresso a casa e estava indecisa sobre querer chegar de imediato ou desejar que a viagem durasse para sempre. Abraçou os joelhos. A viagem seria longa e penosa mas, depois disso, não haveriam mais viagens como aquela. O dia ainda nem despontara e a neblina tingia o horizonte de um azul-acinzentado, nostálgico. Tinha sede mas a imobilidade que a tomava impedia-a de procurar, na malas previamente colocadas no banco de trás, a garrafa de água. Dois homens despediam-se fora do carro. Junto a um muro de garagem, estavam muito próximos e sussurravam coisas desagradáveis a seu respeito. Acariciou o joelho com o nariz, sentindo que lhe era impossível focar o olhar. Estava perdida. Optara por perder-se. A porta ao seu lado abriu-se com um ruído seco e voltou a fechar-se com rispidez. Um dos dois homens afundou-se no assento do condutor, ajeitando de imediato o cinto. Todo o carro cedeu para a esquerda, equilibrando-se novamente em seguida com um trejeito metálico. Ela não quis olhá-lo, sabia que não haveria meio de gostar do que veria nos seus olhos. Conhecia-os bem. Já se vira neles inúmeras vezes.

Arriscou olhar sobre o ombro para a casa que, lá de trás, na alvorada, reluzia em branco e azul, com rendilhados e uma platibanda tipicamente algarvia. O outro homem aproximou-se do condutor, que dera início ao estremecer do carro ao arranque do motor, e sibilou-lhe mais qualquer coisa. O homem ao volante virou-lhe o rosto. Na noite anterior tinham desferido golpes de punho no rosto do outro. O lábio do condutor exibia uma ferida ensanguentada do tamanho de um agrafo. Ela olhou para a frente, abstraindo-se da existência daqueles dois. Era impreterível esquecer-se da existência daqueles dois. Era suposto terem acordado duas horas depois. Não tinham conseguido dormir. Enterrando o rosto entre os joelhos, perguntou-se se voltaria, algum dia, a dormir.

05:40 - Vila Real de Santo António

O veículo, um Chevrolet Captiva com quatro anos, cinzento-metalizado, imobilizou-se na Avenida da República. Não fosse a atmosfera escurecida e o odor a maré baixa na atmosfera, ela ter-se-ia esquecido de que estava tudo fechado. A cidade dormia, o Cantinho do Marquês estava a horas de abrir e o eco das gaivotas assobiava sobre a chapa do veículo. Ele desceu do carro sem bater com a porta, mas fechou-a no rosto dela e nas perguntas que poderia fazer-lhe.

Ficou a vê-lo afastar-se, passar pelo Hotel Guadiana e imiscuir-se nas transversais que iam dar à Praça do Marquês de Pombal. Mentalmente, via as raias de basalto e calcário que ainda no dia anterior pisara, por entre sol e risos. Palmeiras, nuvens no céu. Anunciavam trinta e cinco graus para esse domingo mas ela sentia um frio novo e inesperado infiltrar-se-lhe nos ossos. Reparou na estátua de mármore branco que ostentava uma ode inflamada ao Guadiana. Era uma dama, certamente, mas quem? Jamais saberia, porque não tinha interesse em regressar ali. Pior do que ser agora odiada, odiava-se. A fealdade por vezes dói, de tão fria, e ela estava quase certa de que não voltaria a olhar-se ao espelho. E com essa associação de ideias fê-lo, na esperança que a badana sobre o lugar do passageiro estivesse fechada, mas não estava. E agora também ela fazia parte do carro. Também o rosto dela estava impresso no espelho com meio palmo do carro. As depressões fundas das suas olheiras, o inchado sob os olhos, outrora tão capazes de cativar. Deus, tinha um ar miserável... E o cabelo? Desfeito, indomável. Tentou metê-lo para trás das orelhas, limpou as pálpebras, fungou. Já chorara bastante, choraria o resto depois.

O cintilar de qualquer coisa na água chamou-lhe a atenção. Ele deixara o carro virado para a marina, Espanha saudava-a e os barcos a motor ondeavam ritmadamente sobre o Guadiana. Abriu a porta por impulso. Ele estava a demorar, não estava? Fechou a porta com a anca sem se dar ao trabalho de retirar a chave para trancar o  Chevrolet. Estava a poucos metros do beiral e foi para lá que se encaminhou. Agarrou a protecção metálica, minuciosamente pintada de branco, dedicou um instante a ler uma das arestas respeitantes à estatua de mármore que ornamentava a frente ribeirinha. Leu qualquer coisa a respeito do esplendor de um céu azul. E então deu atenção às águas do Guadiana, nessa manhã ligeiramente esverdeadas. Apoiou-se melhor na balaustrada, mordeu o lábio e discerniu uma garrafa de plástico que boiava, tocada por uma língua discreta de sol. Era demasiado cedo. Olhou para um lado e para o outro. Olhou para a água novamente. Aquela garrafa era a única coisa que conspurcava a limpidez daquelas águas, a despeito dos motores dos barcos. Olhou para trás, sobre o ombro, prendendo-se firmemente ao frio da protecção. Ele ainda não voltara.


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