9 de dez. de 2010

23

«confesso, sim. confesso que é como se eu tivesse cinco anos, e que hoje contei-o pela primeira vez, mas é verdade. lembro-me de estar destroçada, de te ter arrancado de dentro de mim a ferros e, ainda assim, um braço teu ficou para trás. lembro-me de abrir o meu diário em papel, furiosa porque tinha jurado que não escreveria nem mais uma linha a teu propósito, e escrever «durante o dia, bano-te do meu pensamento, mas todas as noites, é a teu lado que me deito, e nos teus braços que adormeço, e é a minha mão que agarro, fingindo que é a tua». e é assim, como se fosse uma menina com um amigo imaginário. mas não é de ontem, quando abro a cama, peço-te que te chegues para lá. deito-me e imagino que estás lá, cansado, extenuado de um dia de trabalho, quase sinto a tua respiração na minha nuca. imagino que me dizes tudo aquilo que eu queria ouvir, mas não me alongo nisso, é mais íntimo ainda, o que queres ouvir de alguém é mais do que o que esperas dessa pessoa: é o segredo de quem és, de como és e do que queres da vida. e é isso, mexo no meu cabelo até adormecer, desemaranho-o e imagino que és tu, imagino a tua voz ensonada a comentar o dia, imagino conversas que nunca vamos ter e reformulo as que tivémos com base no que devia ter dito mas não me ocorreu na altura. vou dar sempre ao mesmo beco, e tu não estás lá. encho o peito de ar, subo, subo, subo, amo-te amo-te amo-te, sei-o tão bem, sei até que é para sempre, embora faça figas para que não seja, para que outro alguém, de falas discretas, bem alto, ombros angulosos e sorriso fácil venha e eu me perca por ele e te deixe ir de dentro de mim, até esse último braço que fica sempre. não posso não posso não posso imaginar que o ar me vai fugir outra vez, que a qualquer momento os meios de informação vão trazer até mim aquele género de notícia que quase me mata - foram ao cinema, saíram juntos, comeram-se, foderam-se, falaram-se - eu disse quase, porque não matou. é verdade que foram muitas lágrimas, muitas reformulações de planos de vida e castelos de cartas a vir por aí abaixo, o jogo virou, e eu perdi. uma vez mais, e os escritos pararam: o meu diário ficou a branco, o espaço virtual onde nos escrevia acabou com uma nota lúgubre na qual anunciei a minha morte. estive de luto por mim mesma, estive sim. doía-me o peito como me dói agora, ao recordar, a falta de ar, o choro compulsivo, os pensamentos sombrios, desesperados, como se nunca mais o sol nascesse no oriente e eu  nunca mais o provasse, o sentisse nas costas, como se o mundo tivesse acabado ali, pelo menos o meu tinha, o assombro, os sentimentos, todos baralhados, como se me devesses alguma coisa quando não devias, como se me tivesses dado motivos para te amar tanto quando não me deste, como se quisesses o meu amor e depois o tivesses rejeitado, quando nunca o quiseste. e eu fechei as portas do meu recinto, pus panos negros nas janelas, anunciei que não estava. as pessoas bateram-me à porta, esconderam-me verdades que teriam acabado comigo naquele momento, compraram-me chocolates, secaram-me lágrimas com rosas. morri ali, é a verdade. os documentos estão fechados, como que lacados, nem uma linha a dar-lhes continuação. há dias descobri um texto desses, um documento contínuo, referente a meses e meses, um ano pelo menos, de relatos e desabafos contínuos. não, apagá-lo não consigo, mas vou recordá-lo mais tarde, bem mais tarde, quando já não doer. entretanto dói como álcool em carne viva. e, mesmo depois disso tudo, não sei como, levantei-me do buraco para onde caí, não sei como também, reuni os pedaços todos, os biliões de cacos do meu coração - que sofre de moleza, de ultra-sensibilidade - e o que é que fiz? enderecei-to outra vez. estúpida estúpida estúpida. enchi o peito de ar e iniciei a subida. quem disse que não acredito em deus? quem disse que não acredito em nada? não foi a segunda, deve ter sido, talvez, a quarta. subi, subi, às vezes parecia que me acenavas lá de cima, à noite, sob os cobertores, imaginava o que poderias querer dizer-me com isso, nunca cheguei a conclusão alguma, optava pelo que me era mais favorável. um dia, comecei a juntar peças, a ouvir os alertas, a escutá-lo, cá dentro - o remendado, o pontapeado, o estúpido, o mole - e ouvi que ele chorava, sim ele está a chorar outra vez. a alegria é a fase da subida. não sei dizer porquê, mas sei que não é desta, não é à vigésima, se não é à terceira já não é, mas a fé, a minha maldita fé de quem não acredita em deus e canalizou toda a sua crença nas causas impossíveis, deu-me ar, e mais ar, e subi a montanha, talvez nunca a tivesse subido tanto, julguei que via tudo lá de cima, tudo: falavam em auras, ao nosso redor, falavam na nossa perfeição, enquanto dupla, diziam que «não podia ser de outra forma», que «não se pode estar assim tão enganado», que me amas, imagina só a dimensão da loucura geral, que me amas mas que não tens espaço para mim, e eu, com o peito de cheio de ar, cheguei ao topo e comecei a voar.  os meus pés deixaram o cume da montanha, estou a ver-vos aí em baixo. um dia, como disse, fiquei cheia de medo, sempre soube que ia cair, sempre me culpei por ter subido enquanto caía, e ao chegar cá abaixo a primeira coisa que faço, assim que me elevo do buraco, é recomeçar a subida. ainda estou a subir, eu sei, mas agora desisti, tirei a minha assinatura desta causa, larguei a corda há muito, a corda está enterrada, partilha a coroa de flores dos estilhaços do meu peito que não puderam ser concertados, e quando eu desisto, começo a adivinhar o início da queda. e tenho medo, tenho tanto medo... já sonhaste alguma vez que caías? eu já, é uma dor na boca do estômago, como se tudo te fugisse, como se o teu corpo se desmantelasse, como se o mundo inteiro implodisse para dentro de ti e soubesses que ias rebentar, ao mínimo toque de um objecto, de um elemento que não o ar, vais rebentar. estou à espera que venham as abelhas, as orquídeas, os pés descalços na terra húmida, um livro, uns óculos, um copo vazio na mesa de cabeceira, e me faça explodir. entretanto, só porque quero tentar imprimir um último fôlego à subida, vou imaginar que não estou a cair, que tal? ao invés, vou desligar tudo e vou deitar-me na minha caminha quentinha e imaginar que as tuas pernas se entrelaçam nas minhas e me aquecem os pés gelados e a tua voz, sonolenta, diz: boa noite, dorme bem, para eu poder responder-te também - dorme bem, meu amor»

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