6 de dez. de 2010

ga&le

          «- Há casamentos por interesse, os ditos de conveniência, casamentos por amor – pareceu quase hesitar ao dizer aquela palavra, como se estivesse a pisar no campo da fantasia – e casamentos por comodismo: só porque dá jeito. Esse foi o meu caso e da Paula. Não tinhamos nenhum interesse superior um no outro, que não o facto de alguns dos nossos planos pessoais de futuro coincidirem – confessou, e ela não o interrompeu, deixou-o continuar embora quase sussurrasse «pensava que se amavam» - e isso é importante. De certeza que já o sabes há muito. Até aos dez anos, vivemos de acordo com o bom e o mau, e frequentemente o bom vem associado ao bonito e o mau ao feio, mas não os subjugam. Depois as coisas alteram-se para o bonito e o feio com a azáfama da adolescência e da televisão e dos namoricos e as mudanças que sofremos, que o nosso corpo sofre, e a consequente adaptaçao do nosso antigo eu a esse novo aspecto. Depois, para entrar na idade adulta, tens que voltar a reencontrar o bom e o mau das coisas, tens que voltar a um estado de pureza e racionalidade quase ingénua que funcione como instinto e que te mostre o caminho. Há pessoas que vivem o resto da vida de acordo com o bonito e o feio – deu-se ao trabalho de acrescentar, em tom de aparte, que tinha pena delas – outros amadurecem como seres humanos e passam a descortinar, ao invés, o bom do mau. Dá muito mais trabalho e não parece tão compensador, não enquanto somos jovens e nos julgamos com um pé no bonito, e no eterno, e todo o resto parece não ter importância, incluindo o mal – é como se a beleza, sob as mais diversas formas, fosse um escudo, uma batalha ganha, vitória garantida. Depois, para uns mais cedo, para outros mais tarde, a idade começa a cair sobre eles, e reencontram o bem e o mal e passam a preocupar-se somente com os dois lados do yin e do yang que mencionei. O bem e o mal. Calma: nem todos chegam lá – ela perguntava-se onde é que ele queria chegar com aquilo, começava a ficar impaciente, entreabriu os lábios para interrompê-lo, mas ele calou-a com um gesto e ela comprimiu os lábios – e nem sempre conhecer o bem e o mal significa que se opte pelo bem.
            - Não estou a entender…
            - O que eu quero dizer é que eu era demasiado novo, e tenho passado os últimos anos a tecer teorias sobre isso, para me justificar perante mim mesmo, para me perdoar. Eu era novo demais, e é a primeira vez que o confesso a alguém que não a mim. Era novo e queria um filho, achava que esse filho ia consagrar-me mais velho e que a partir daí conheceria melhor o mundo e – suspirou – enfim, subiria um degrau no estatuto de cidadão mundial. Precisava desse filho como farol que desse sentido à minha vida.»

Demência

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