Apetece-me escrever sobre quem ama. E que quem ama seja feliz, ainda que lhe baste esse amor – reconfortante mas por vezes um autêntico buraco no tecto sobre a cama em noites de chuva – para seguir vivendo. Realizo o filme na minha cabeça. «Momentos com quem se ama», seria o nome desta curta-metragem. E lá está ele, com um sorriso indisfarçável no rosto, a ajuda-la a abrir a porta do carro, a carregar os sacos das compras. E amam-se, quem diz que não se amam? Mas ele ama-a por inteiro, quere-a por entre os lençóis e a todas as horas do dia. Quer poder inclinar-se sobre o ombro dela e beijá-lo. Há pouco a distraí-lo dela – datas de nascimento, cidades, objectos, filmes a que assistiram juntos, cores de vernizes que só ela usava, originalidade expressiva e irrepetível. E o sorriso, impossível de captar por artistas, contadores de histórias ou actores de teatro. Era dela, e só dela. E o filme desenvolve-se a preto e branco. A forma como o cabelo lhe descai para os olhos e o impulso contido, que quase o vence, de lho ajustar para trás da orelha para lhe revelar o rosto sorridente. Manhãs de domingo e o olhar ensonado dela, quando o chama. Relação de irmãos, de amigos, de companheiros. E outro, desta feita é ela que o ama. O modo como os olhos dele reluzem à luz eléctrica, o modo como leva o cigarro, distraidamente, aos lábios. O cumprimento das suas pestanas, em que pouca gente, ela pode apostar, terá reparado. O ângulo daqueles ombros, a calidez daquele pescoço. Ela pode apenas imaginar, e amá-lo mais ou menos em silêncio, para não o perturbar. As poucas tarefas a dois, os pés descalços na areia, as rotinas que dão a ilusão de um futuro que, possivelmente, nunca virá. O modo como o tronco dela, esguio, parece fundir-se no dele a cada vez que se abraçam – a certeza, pela qual ela daria um dedo, uma mão inteira, de que sociólogo algum, cientista algum, casamenteira alguma, Vātsyāyana algum os consideraria incompatíveis. Medidas, almas, bocas. Perfeitos nos seus vais e vens um para o outro. A forma como o cabelo dele encaracola na gola, como por vezes lhe sobrepõe as orelhas. A forma como o seu olhar se baixa e os lábios se contraem num sorriso contrariado quando a considera, meramente, uma irmã mais nova. A textura da palma das suas mãos, o universo tão almejado dos seus lábios quando lhos vai pousar na testa, na têmpora, nas costas da mão, no rosto. Nunca na boca. Nunca na clavícula. Nunca no ventre. Preto e branco – este filme também, no qual é certo que duas almas se ajudarão através desta vida constantemente, caminhando lado a lado, entrelaçadas, sem que os seus corpos jamais consagrem essa união maior de espíritos. E um que dá a mão à amada – que não o ama – para que não tropece no empedrado irregular da capital. E ela que o puxa da estrada por entre nervos e um português pouco correcto, gritado, desesperado, de quem tem medo de o perder. E ele que a espalha, em esboços, pela cama desfeita de manhã. E ela que lhe escreve infinitas cartas de amor não lidas. E ele que sabe que o pé dela tem o exacto comprimento da palma da sua mão. E ela que, por vezes, é assaltada pelo cheiro dele numa estação de comboio e quase cai de joelhos perante a intensidade da sensação, a força da recordação. E o amor que espera, que aguenta, que corrói e dói e desespera e venera e se põe de pé e grita e cala e chora e abraça e empurra e chama e afasta e parte e volta e se declara e se mascara e beija o nada e beija a mão e salta no ar e cai no chão.
Olá Célia, não tens o e-mail visivel. Contata-me pelo d311nh4@gmail.com
ResponderExcluirBeijinhos*