«Pousou ansiosamente no colo uma mão-cheia de comprimidos, enquanto os seus olhos inexpressivos se fixavam algures na imensidão do mar ameaçado por uma tempestade que se aproximava. Estava sentada frente à janela panorâmica da sala com o oceano inteiro como espectáculo, mas demasiado perturbada para se inteirar do tecto de nuvens cinzentas que traziam as primeiras chuvas do ano. Segurava na mão transpirada os comprimidos, como se fosse uma pistola, ciente da inevitabilidade do passo que estava prestes a dar. Um lume acolhedor ardia na lareira. A sala espaçosa era um modelo de bom gosto, com os seus cinquenta metros quadrados cobertos por tapetes persas, a mobília clássica e muitos quadros a óleo, marinhas na sua maioria. Estava tudo em ordem. Em cima da mesa de jogo de pau-santo ficava uma última carta, escrita pelo seu punho, devidamente fechada num envelope. Tomou os comprimidos que tinha na mão suada e trémula, um a um, sem se apressar. Limpou com a manga do casaco de malha um círculo de água deixado pelo copo para que não manchasse a mesa. Levantou-se, acertou a cadeira pombalina com a mesa e foi deitar-se no sofá de quatro lugares mais perto da lareira. Tirou os sapatos e cruzou as pernas, esticadas do modo mais confortável possível. Adormeceu, caindo depois num coma profundo, a que se seguiu uma paragem cardíaca provocada pelo relaxamento dos músculos arteriais, levando-a a uma morte sem dor.»
tiago rebelo - uma questão de confiança
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