16 de nov. de 2010

tell me your secrets, ask me your questions

A figura estende-se numa cama por fazer, rodeada de garrafas de água quase vazias, livros, lenços, quadros rabiscados por si, chinelos, folhas: fotocópias, romances terminados e imprimidos, nunca lidos, compilações de poemas, um ou outro citado nalguma ocasião, prateleiras com fotografias, mais livros, álbuns de recordações, embora todas as recordações que achou valer a pena guardar caibam num pequeno envelope de bordas dobradas. Roda na cama, fita o tecto. Não vale a pena tapar-se, ou dar-se ao trabalho de calçar umas meias: a consciência dos pés descalços e das unhas pintadas, como única vaidade, único pequeno atractivo nesse antro confuso e dessarrumado, é precisamento o pouco que lhe dá cor. Sente-se melhor assim, a saber que, se decidir levantar-se, vai sentir o chão na sua plenitude sob os pés. Está despenteada e tem todo um mundo no interior da cabeça. A paisagem através da janela, se se desse ao trabalho de encurtar o espaço e admirá-la, é melancólica, são pores do sol, noites estreladas ou manhãs onde os pássaros se fazem ouvir através da neblina. Ao seu redor tem também folhas soltas, canetas, lápis, algumas preenchidas que talvez não voltará a ler, outras à espera que a inspiração chegue até ela. Na cabeça, além das obrigações, começa a ter a pressão do tempo que lhe percorre o corpo. Já não é assim tão jovem, pensa, e haveria quem se risse disto, mas essa é uma realidade. As costas das mãos já foram mais suaves do que são hoje, já teve menos rugas na testa e até já descobriu dois cabelos brancos por entre a pintura a que os submete. Ao menos, queria declarar o estado de "depressão". Não depressão clínica, mas a depressão que vem de "deprimida", sem entusiasmo. Não tem tempo nem vontade de ter uma depressão, e crê que também essas coisas são, a determinado momento, escolha de cada um. Não, ela não quer nada disso. Quer, simplesmente, dizer-se deprimida para que deixem de a arreliar tanto, de a preocupar tanto, para que, antes que ela consiga resolver o problema presente, deixem de evocar o próximo. A figura levanta-se, segura a manta que tem pelas costas junto ao peito e encaminha-se para a janela. Está inexpressiva, sabe que está inexpressiva, sabe que rir faz bem e que se ri muitas vezes sozinha e que isso funciona como um bálsamo reparador, mas não consegue, melhor: não quer. Neste dia simplesmente não quer sorrir - no seu interior, uma pequena chama reluz por saber que também o sorrir ou o não sorrir dependem somente de si. Opta por não acender a televisão, mas vê o seu reflexo no visor apagado. Quer deixar de ver televisão, a televisão angustia-a: fala de terramotos, crises económicas, padres a violar crianças, enteados de 10 anos a assassinar a madrasta e o futuro irmão, crianças a passar fome, fraudes, corruptos, de volta aos tsunamis. O telemóvel, essa outra geringonça, começou a dar problemas, desliga-se sozinho: não quer pensar nisso, são problemas supérfluos que causam pesos desnecessários. Odeia que todos os seus dias tenham sido planeados à sua rebelia. O médico enfurece-se se não aparecer, a cabeleireira se demorou demasiado tempo a lá regressar, o informático se deixou entrar virus no computador, o professor se chegou atrasada a uma aula ou se esqueceu de entregar o trabalho atempadamente. A sua vida, e tem plena consciência disso, não lhe pertence, não tem utilidade para quem ela gostaria que tivesse, está formatada para servir uma sociedade que despreza e se encaixar num sistema que abomina. Ela espia através da internet, é espiada através da internet e só porque o permite. A figura encosta a testa ao vidro frio da janela e vê-o embaciar-se com a sua respiração. Se não fosse dia fumava um cigarro, mas custa-lhe fumar enquanto há luz, é como se o tabaco fosse mais prejudicial. Olha para o computador e para as pilhas de papel em redor, sem mencionar tudo o que está lá dentro à espera de ser encaminhado. Deve tudo a todos e, no entanto, tem a estranha sensação que a sua vida, ao menos essa, não a deve a ninguém. Provavelmente está a ser injusta. Quer evadir-se, até já sabia para onde. Agora não, só ia fazer pior. Ou sim? Nunca foi de desistir, sempre foi de mergulhar nas embrulhadas até ao pescoço, sempre se afundou em todas as teimosias, raramente ganhou, mas essa é lição que ainda não aprendeu. Não sabe fazer as coisas de outro modo. Erguendo a sobrancelha ao computador e a todo o trabalho e escravatura que este simboliza, arrasta-se de novo para a cama. Ali, deixa cair a manta, que desliza para o chão, e cai de barriga na cama. Fecha os olhos sobre a almofada. As lágrimas são quentes e já as conhece demasiado bem: faz também a escolha de não chorar nesse dia. Não vai sorrir, mas também não vai chorar, detém essa escolha. Só quer não sentir. Suspira profundamente: uma, outra e outra vez. A vida lá fora chama por si, grita por si. Tem que calçar meias. Tem que livrar-se do pijama. Tem que ligar o computador. Tem que estar às 14h no sítio x e às 20h regressar ao y. Suspira outra e outra vez, fechando os olhos que em breve terá de abrir. Se tiver sorte, não será interrompida na sua introspecção pelos próximos cinco minutos. É só isso que quer, é o pouco que pode desejar com sucesso: que não a interrompam nos próximos cinco minutos. Volta a suspirar, tentando aproveitar ao máximo aqueles segundos consigo, sem interferências do exterior. Quando calcula que já deve ter passado metade, e nem uma brisa corre no quarto, nem uma folha se move, há passos no corredor. Fecha os olhos com mais força: não, não, não. Alguém abre a porta sem bater e espreita para o interior «Estás acordada?». Se fingir que não só servirá para que se repita a pergunta interminavelmente. «Estou».

E pronto, a figura é obrigada a levantar-se e, com naturalidade, regressa à vida comum. Ninguém vê nada que não o normal: toma banho, veste-se, arranja o cabelo, ora sorri, ora responde torto, elogia o dia de sol, almoça, prepara a mala, liga o computador rapidamente, só para dar uma espreitadela naquelas coisas que critica mas utiliza compulsivamente, fecha a porta e sabe que será outro dia com o peso de todos os outros, com o peso de ser igual a todos os outros. E ninguém sabe, à primeira vista, que às vezes se transforma, simplesmente, numa figura...

Nesse dia, podia ter perdido o seu plano b.

7 Abril 2010

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