Antes de sair de casa, decidi levar o fado comigo. Quando chego a Cacilhas, na letargia do início do fim de tarde, alegro-me ao distinguir o ferry como meu transporte. Como não consigo deixar de fazer, reparo nas pessoas. Nas tais pessoas que conheço pelos sapatos que usam e pelos livros que andam a ler. Desvio o olhar, não quero ser mal-educada; e, depois, há o rio, acastanhado nessa sexta-feira, como se o fundo tivesse sido revolvido e pelo menos mil anos de história tenham oscilado dentro dele. De cabelos ao vento, sigo rodeada de pessoas que fumam e guardam o horizonte com a nostalgia que nos está no sangue. Também eu, apercebo-me, não consigo flutuar na direcção de Lisboa sem o olhar lá pousado. Distingo as torres das igrejas, distingo a imponência da Sé, quase oiço a voz de Portugal cantar à capital. À minha cabeça, chegam facilmente os acordes da guitarra portuguesa. Comecei a ter orgulho do chão que piso e do sangue que me mantém viva. E que linda é a nossa língua cantada «jurarei eterno amor, saudades a vida inteira». Ter saudade é ser-se português, amar o Tejo é ser-se português. E este orgulho nacional, não pelos feitos de um passado inalcançável e irrecuperável, mas pelo tempo que partilhamos nos rostos de cada um, comove-me e surpreende-me.Parece que ainda não saí do «jardim à beira mar plantado», e já adivinho o sentimento que dele ficarei.
Uma vez na margem norte do Tejo, saio apressada para uma rua de gente que disperça. Pelo caminho, debaixo de tecto, por entre bilheteiras e meneares de cabeça reprovadores, levo o chapéu-de-chuva aberto e vou-o girando, ao ritmo da música que só eu oiço, com a ilusão que todos a partilhamos. Demoro apenas um instante a decidir que não vou de autocarro para a Baixa, vou andar. Orgulhosa perante os nomes das ruas que me obriguei a fixar, traço mentalmente o meu percurso, e Lisboa mergulha no crepúsculo enquanto me vejo a seguir a rua do Arsenal, a chegar lá ao fundo ao Terreiro do Paço e a desembocar na Rua Augusta. Já tinha até o itinerário das lojas projectado quando, retida numa passadeira, me apercebo que estou entre o Duque da Terceira e a rua do Alecrim. Olho para cima, faço contas rapidamente e apercebo-me que assim alcanço o meu destino mais depressa. As casas em redor lembram-me a tipologia londrina, ou a que imagino ser a típica de Londres. Penso que nunca fui demasiado longe e que, ainda assim, já estive em todo o lado. Enquanto subo a rua do Alecrim, estou simultaneamente em todos os lugares onde queria estar. Cai uma chuva miudinha do céu e, em breve, estou perante Eça de Queirós petrificado. Mais acima, tenho Camões, que nasceu com dois olhos antes de ser imortalizado com apenas um. Marketing do século XVI, e devo rir-me sozinha. Comigo, trago todos aqueles que vivem em mim e que, se morressem, continuariam a viver em mim. «Quero morrer, para assim seguir vivendo», diz José Luís Peixoto, e não acredito que se refira ao paraíso ou à ideia de reencarnação. É nisto, provavelmente, que o nosso português fala. Até dele tenho orgulho. Não consigo evitar-me sorrir enquanto vou reconhecendo elementos que, nalgum momento do passado, me foram apresentados. Quem sabe se numa sala de aula, se numa conversa de café, se no conteúdo irónico de uma piada. Ali está o Pessoa, eternamente sentado, com um chapéu muito em voga no início do século passado. Se calhar foi dali que ele viu o gato a brincar na rua, o único poema que recito de memória. Logo em frente, tem outro bloco de pedra em homenagem ao homem que deu nome a esta zona de Lisboa. Vou descendo e olho para a montra da livraria onde encontrei o único livro de poemas que, até hoje, me tocou instantaneamente. Tendo recordar-me que palavras tinha no seu interior, que tanto me comoveram... ou, sequer, do seu nome. Só consigo recordar-me da cifra na contra-capa deste «1979». Estou sozinha, e estou livre. Posso ir onde quiser, quando quiser. Só estou limitada pela hora de fecho dos estabelecimentos. Já não vou começar por onde pensava, agora venho de cima. Entro na primeira loja e movo-me rápida como um relâmpago, apetece-me dizer aos outros que circulam no seu interior como se fosse numa galeria de arte «desculpem se em trinta segundos entrei e saí, mas eu sei o que quero, sei para onde vou». Volto a sair, abro o chapéu de chuva já na rua e já em andamento, não me detenho na ombreira como os mais melindrosos. Nesse instante, até disso gosto em mim. Vou-me rindo para as núvens e para as pessoas que, por vício ou por fraqueza, ou talvez até por capricho, se apinham à entrada do centro comercial do Chiado para fumar. São tantas, e conversam... no entanto, parecem-me as mesmas que estão sempre naquele perímetro de terreno quando passo ali. Ali está o elevador de Santa Justa, ao qual nunca subi. Hoje, posso fazer qualquer coisa. Eu sabia disso, ainda assim, sacrifiquei essa primeira vez. Guardei-a para um dia em que possa partilhá-lo com os tais. Talvez «o tal», no dia em suba, não seja outro que não eu própria, mas neste dia não era. Distingo a minha loja de eleição na descida da rua do Carmo. Penso: «tenho que escrever isto quando chegar a casa», e aqui estou eu, a escrevê-lo dois dias depois. Neste instante, apercebo-me que deixei de escrever cartas a pessoas: de momento, só tenho escrito a Lisboa, a ruas, a rios enlameados, a recantos do meu país. Entro numa e noutra loja, mudo de registo. Há dias tinha-me emocionado ao subir a rua com a voz da Dulce Pontes a cantar a «Canção do Mar» a todos os turístas que, ao invés de a deixarem falar-lhes na língua estranha que deve ser o português para ouvidos destreinados, iam comentando o tempo. Eu, por minha vez, acho Lisboa encantadora sob chuva. Quando saio das lojas, já é noite. Enquanto estou cá dentro, esqueço que lá fora anoitece, que lá fora, no mundo, o tempo passa. Gasto dinheiro em coisas que não sei se gosto ou se preciso. Quando chegar a casa vou obrigar-me a argumentar sobre a legitimidade de cada compra. Como posso considerar-me a mesma de sempre, se o meu comportamento, mesmo a sós, é o de todos os outros que critico? Se me faz feliz uma tarde de compras, se isso me trás mais felicidade do que reencontrar a minha irmã ao fim de uma semana? Teremos sempre predilecção pelo inalcançável e este despeito incompreensível pelo que permanece ao nosso lado?
Agora oiço uma voz de Almada, balbucio «Acho que podes considerar que eu sou de cá, mas eu não sou daqui, eu não sou daqui, eu não sou daqui, eu não sou de cá», e penso que a música foi escrita para mim. Para mim e para a minha avenida da liberdade, que é o chão sobre o qual caminho diariamente. Penso que o passado está a desvanecer e eu não tive tempo de fazer a mala, não trouxe nada comigo. « Eu não sou daqui», cantarolo, e a seguir há quem me relembre que Lisboa não é a cidade perfeita. Entretanto, sorrio à iluminação das ruas, às crianças que tropeçam em mim, à visão de mim carregada de sacos, com a felicidade das próximas semanas dentro deles. Felicidade que se compra, que se troca, que tem saldos de Janeiro a Fevereiro e, novamente, em Agosto. Felicidade cuja oportunidade é temporária, é regulada pela lei, felicidade que traz as pessoas para a rua e cujo maior dissabor é a inexistência da mesma adequada ao nosso tamanho. Para o fim, a roupa é para os grandes.
Enquanto retorno ao Porto, ainda sob estes salpicos de lágrimas vindos do céu, protejo as pernas das poças que os carros rasgam. Orgulhosa de distinguir a Rua do Arsenal da Travessa do Cotovelo, penso que Lisboa cheira a bacalhau e algures, não longe, há uma rua com esse nome. Quantos planos mirabolantes fiz nessa tarde? Enquanto vagueava pelas lojas, a minha cabeça, recusando-se a esse ritual supérfluo, imaginou-me tanta coisa... aulas de dança, aulas de pintura, aulas de francês. Imaginou-me fugas àquilo que sou, actos que não praticaria, naturezas que não são a minha mas que deveriam ser, para o meu bem. Repetiu-me a verdade em «Eu não sou deste mundo e eu não gosto destas pessoas», lembrou-me onde estava quando comecei a andar, onde poderia estar, tão lá atrás, e onde estou. A meta não está longe e nesse dia imaginei-me cantora de fado, escritora de best-sellers, actriz de filmes de terror. Nesse dia, na capital, imaginei a próxima sexta-feira no karaoke e que música vou cantar. Nesse dia, tive vertigens perante as frequências e exames da semana seguinte, que ao todo serão 4. Leio no caminho de volta, sabendo que estive em muito mais do que Lisboa. A baínha da gabardina está molhada e a dada altura, no passeio, ri-me de tantas outras iguais que encontrei sobre o pavimento único da «menina e moça». O livro fala da guerra civil de Espanha e por momentos sou uma jovem mulher destemida que engendra um plano infalível para chacinar Franco, Hitler e Estaline. Também isso me alegra, feliz imaginação a minha. Só para que, ao desembarcar, sobre as ondulações da plataforma, me aperceba que do meu lado do rio não chove. Só para me lembrar que... aqui onde eu moro, está tudo igual. E ainda não foi nesse dia que entrei no 28 e dei o passeio que me prometi por Lisboa... lá, onde me espera a Sé, os torreões como a mãe comtemplativa sobre todos nós destas bandas.
Uma vez na margem norte do Tejo, saio apressada para uma rua de gente que disperça. Pelo caminho, debaixo de tecto, por entre bilheteiras e meneares de cabeça reprovadores, levo o chapéu-de-chuva aberto e vou-o girando, ao ritmo da música que só eu oiço, com a ilusão que todos a partilhamos. Demoro apenas um instante a decidir que não vou de autocarro para a Baixa, vou andar. Orgulhosa perante os nomes das ruas que me obriguei a fixar, traço mentalmente o meu percurso, e Lisboa mergulha no crepúsculo enquanto me vejo a seguir a rua do Arsenal, a chegar lá ao fundo ao Terreiro do Paço e a desembocar na Rua Augusta. Já tinha até o itinerário das lojas projectado quando, retida numa passadeira, me apercebo que estou entre o Duque da Terceira e a rua do Alecrim. Olho para cima, faço contas rapidamente e apercebo-me que assim alcanço o meu destino mais depressa. As casas em redor lembram-me a tipologia londrina, ou a que imagino ser a típica de Londres. Penso que nunca fui demasiado longe e que, ainda assim, já estive em todo o lado. Enquanto subo a rua do Alecrim, estou simultaneamente em todos os lugares onde queria estar. Cai uma chuva miudinha do céu e, em breve, estou perante Eça de Queirós petrificado. Mais acima, tenho Camões, que nasceu com dois olhos antes de ser imortalizado com apenas um. Marketing do século XVI, e devo rir-me sozinha. Comigo, trago todos aqueles que vivem em mim e que, se morressem, continuariam a viver em mim. «Quero morrer, para assim seguir vivendo», diz José Luís Peixoto, e não acredito que se refira ao paraíso ou à ideia de reencarnação. É nisto, provavelmente, que o nosso português fala. Até dele tenho orgulho. Não consigo evitar-me sorrir enquanto vou reconhecendo elementos que, nalgum momento do passado, me foram apresentados. Quem sabe se numa sala de aula, se numa conversa de café, se no conteúdo irónico de uma piada. Ali está o Pessoa, eternamente sentado, com um chapéu muito em voga no início do século passado. Se calhar foi dali que ele viu o gato a brincar na rua, o único poema que recito de memória. Logo em frente, tem outro bloco de pedra em homenagem ao homem que deu nome a esta zona de Lisboa. Vou descendo e olho para a montra da livraria onde encontrei o único livro de poemas que, até hoje, me tocou instantaneamente. Tendo recordar-me que palavras tinha no seu interior, que tanto me comoveram... ou, sequer, do seu nome. Só consigo recordar-me da cifra na contra-capa deste «1979». Estou sozinha, e estou livre. Posso ir onde quiser, quando quiser. Só estou limitada pela hora de fecho dos estabelecimentos. Já não vou começar por onde pensava, agora venho de cima. Entro na primeira loja e movo-me rápida como um relâmpago, apetece-me dizer aos outros que circulam no seu interior como se fosse numa galeria de arte «desculpem se em trinta segundos entrei e saí, mas eu sei o que quero, sei para onde vou». Volto a sair, abro o chapéu de chuva já na rua e já em andamento, não me detenho na ombreira como os mais melindrosos. Nesse instante, até disso gosto em mim. Vou-me rindo para as núvens e para as pessoas que, por vício ou por fraqueza, ou talvez até por capricho, se apinham à entrada do centro comercial do Chiado para fumar. São tantas, e conversam... no entanto, parecem-me as mesmas que estão sempre naquele perímetro de terreno quando passo ali. Ali está o elevador de Santa Justa, ao qual nunca subi. Hoje, posso fazer qualquer coisa. Eu sabia disso, ainda assim, sacrifiquei essa primeira vez. Guardei-a para um dia em que possa partilhá-lo com os tais. Talvez «o tal», no dia em suba, não seja outro que não eu própria, mas neste dia não era. Distingo a minha loja de eleição na descida da rua do Carmo. Penso: «tenho que escrever isto quando chegar a casa», e aqui estou eu, a escrevê-lo dois dias depois. Neste instante, apercebo-me que deixei de escrever cartas a pessoas: de momento, só tenho escrito a Lisboa, a ruas, a rios enlameados, a recantos do meu país. Entro numa e noutra loja, mudo de registo. Há dias tinha-me emocionado ao subir a rua com a voz da Dulce Pontes a cantar a «Canção do Mar» a todos os turístas que, ao invés de a deixarem falar-lhes na língua estranha que deve ser o português para ouvidos destreinados, iam comentando o tempo. Eu, por minha vez, acho Lisboa encantadora sob chuva. Quando saio das lojas, já é noite. Enquanto estou cá dentro, esqueço que lá fora anoitece, que lá fora, no mundo, o tempo passa. Gasto dinheiro em coisas que não sei se gosto ou se preciso. Quando chegar a casa vou obrigar-me a argumentar sobre a legitimidade de cada compra. Como posso considerar-me a mesma de sempre, se o meu comportamento, mesmo a sós, é o de todos os outros que critico? Se me faz feliz uma tarde de compras, se isso me trás mais felicidade do que reencontrar a minha irmã ao fim de uma semana? Teremos sempre predilecção pelo inalcançável e este despeito incompreensível pelo que permanece ao nosso lado?
Agora oiço uma voz de Almada, balbucio «Acho que podes considerar que eu sou de cá, mas eu não sou daqui, eu não sou daqui, eu não sou daqui, eu não sou de cá», e penso que a música foi escrita para mim. Para mim e para a minha avenida da liberdade, que é o chão sobre o qual caminho diariamente. Penso que o passado está a desvanecer e eu não tive tempo de fazer a mala, não trouxe nada comigo. « Eu não sou daqui», cantarolo, e a seguir há quem me relembre que Lisboa não é a cidade perfeita. Entretanto, sorrio à iluminação das ruas, às crianças que tropeçam em mim, à visão de mim carregada de sacos, com a felicidade das próximas semanas dentro deles. Felicidade que se compra, que se troca, que tem saldos de Janeiro a Fevereiro e, novamente, em Agosto. Felicidade cuja oportunidade é temporária, é regulada pela lei, felicidade que traz as pessoas para a rua e cujo maior dissabor é a inexistência da mesma adequada ao nosso tamanho. Para o fim, a roupa é para os grandes.
Enquanto retorno ao Porto, ainda sob estes salpicos de lágrimas vindos do céu, protejo as pernas das poças que os carros rasgam. Orgulhosa de distinguir a Rua do Arsenal da Travessa do Cotovelo, penso que Lisboa cheira a bacalhau e algures, não longe, há uma rua com esse nome. Quantos planos mirabolantes fiz nessa tarde? Enquanto vagueava pelas lojas, a minha cabeça, recusando-se a esse ritual supérfluo, imaginou-me tanta coisa... aulas de dança, aulas de pintura, aulas de francês. Imaginou-me fugas àquilo que sou, actos que não praticaria, naturezas que não são a minha mas que deveriam ser, para o meu bem. Repetiu-me a verdade em «Eu não sou deste mundo e eu não gosto destas pessoas», lembrou-me onde estava quando comecei a andar, onde poderia estar, tão lá atrás, e onde estou. A meta não está longe e nesse dia imaginei-me cantora de fado, escritora de best-sellers, actriz de filmes de terror. Nesse dia, na capital, imaginei a próxima sexta-feira no karaoke e que música vou cantar. Nesse dia, tive vertigens perante as frequências e exames da semana seguinte, que ao todo serão 4. Leio no caminho de volta, sabendo que estive em muito mais do que Lisboa. A baínha da gabardina está molhada e a dada altura, no passeio, ri-me de tantas outras iguais que encontrei sobre o pavimento único da «menina e moça». O livro fala da guerra civil de Espanha e por momentos sou uma jovem mulher destemida que engendra um plano infalível para chacinar Franco, Hitler e Estaline. Também isso me alegra, feliz imaginação a minha. Só para que, ao desembarcar, sobre as ondulações da plataforma, me aperceba que do meu lado do rio não chove. Só para me lembrar que... aqui onde eu moro, está tudo igual. E ainda não foi nesse dia que entrei no 28 e dei o passeio que me prometi por Lisboa... lá, onde me espera a Sé, os torreões como a mãe comtemplativa sobre todos nós destas bandas.
Haja o que houver...
(foto by celia)
18 Janeiro 2010
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