16 de nov. de 2010

fácil de imaginar

«Quero alguém que me leve à ópera. Quero alguém que traduza, ao meu ouvido, cada fala, cada linha das canções, antes que eu abra o folheto e leia a tradução. Quero alguém que me aperte a mão no momento em que começar a soluçar de emoção, e quero que me olhe e sorria, assim como também eu serei capaz de sorrir. Quero que, nos momentos mais inesperados, me fale do seu passado, de pequenos recantos da sua juventude, da sua infância, pequenas glórias e pequenos traumas. Quero que me dê a versão parcial e subjectiva de cada elemento da sua família, e que eu saiba todas as piadas privadas sobre cada um deles quando nos apresentar. Quero que me sugira livros para ler e me chame inculta por ter passado ao lado da maioria deles. Não, quero que vá mais longe e diga que só tenho lido "romances de caca". Quero que faça pouco do meu romantismo, mas lhe dê o devido valor nos momentos certos. Ainda que não me acompanhe à chuva, esteja lá comigo, ainda que debaixo dum resguardo. Quero alguém que compreenda que eu só sei amar nas notas mais altas duma composição musical. Naqueles instantes em que se grita, em que os instrumentos se exaltam, em que a música, como a vida, passa a introdução e o desenvolvimento e se precipita dorida, vivida, para uma conclusão irremediável. Por muito bela ou triste que seja, quero que seja digna de lágrimas de desolação ou felicidade. Quero alguém que me estenda o guardanapo quando sujo os lábios ao comer, ou alguém que aceite que eu limpe os seus, quando se distrai. Quero alguém que partilhe uma biblioteca comigo, ainda que dispersemos em direcções opostas uma vez lá dentro. Alguém cujos livros, na estante, completem os meus - pelo menos, que esses livros falem dos mesmos espaços físicos ou do mesmo lugar ou da mesma época. Quero alguém que dance comigo, quando a noite já caiu lá fora, no mais absoluto silêncio, e que nesse silêncio digamos tudo o que seria ridículo dizer em voz alta. Quando a mim, quero ser capaz de o ler, sem cair em neuroses e sem o arrastar para discussões. Com a mesma naturalidade com que respiramos, quero que tenhamos outras coisas indispensáveis em comum. Tem de gostar de campo, tem de querer terminar os dias a ver as estrelas sob os bosques inquietantes duma aldeia isolada qualquer. Tem de estar aberto à ideia de um cão ou um gato, pois só assim eu nunca irei insistir em ter nenhum. Tem de saber ler os meus humores, arrancar-me à melancolia e desencadear avalanches de riso em mim. Tem que saber fingir, brincar, simular. Tem que saber rir e fazer rir. Tem que saber curar-me com abraços e despertar-me com beijos. Tem que gostar de músicas doutras décadas, por compreender que marcaram épocas, pessoas, imortalizaram lugares e histórias. Tem que saber apreciar um bom filme antigo e, ainda que o esconda, emocionar-se nas partes que me arrancam lágrimas. Tem que ser imprevisível, por favor, que seja imprevisível, para que eu esteja certa de que o vou ver às 19h mas ele às 18h já esteja em casa. Para que pense que foi alugar o filme que quer ver há semanas e regresse com aquele que, há meses atrás, lhe mencionei. Para que julgue que nas férias vamos para a praia e me surpreenda com um destino qualquer de quietude na montanha. Para que eu já me imagine de biquini e ele me aconselhe, ao invés, gorros e cachecóis. Tem de ser volátil, aprender e mostrar que aprende ou, pelo menos, deixe essa aprendizagem transparecer. E quero que diga que me ama, o menos possível, embora esteja autorizado a mostrá-lo diariamente. Se o fizer mensalmente, contudo, quero que seja no momento exacto em que viro o café sobre a roupa que já tinha vestido e quando são 7h da manhã, ainda mal abri os olhos, e amaldiçoo o tempo, o meu desmazelo e o malfadado café. Quero que seja nesse momento, em que tudo me irrita, tudo parece correr mal, que ele esteja recostado no outro lado da cozinha, apoiado na bancada, com a própria caneca na mão e um sorriso no rosto. Quero que seja uma aparição matinal, ao obrigar-me a olhá-lo com olhos de ver (...).
E nesse preciso instante, vou abençoar o café, os atrasos e as manchas inesperadas. Até o meu mau jeito será louvado porque, do outro lado da cozinha, vai estar o meu Mr. Perfeição, com um sorriso do tamanho do mundo no rosto e olhos benevolentes que, espero, nunca perderão a confiança em mim e terão sempre paciência comigo.»

25 Novembro 2009

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