16 de nov. de 2010

na gaveta?

Ela gosta dele, é uma possibilidade. Sabe-o de inúmeras formas, e tem provas inegáveis que vêm ter consigo sem o pedir. Como, por exemplo, quando lhe passa pela cabeça a ideia de o vir a ver com outra. Mas é racional, tão racional que diz para si e para quem a quiser ouvir que ficaria muito feliz por ele, desde que "a outra" passasse na inspecção. Pergunta-se várias vezes "será que gosto dele?" e, depois, deve ter lido nalgum lugar "quando se faz a pergunta, é porque não se gosta, quem gosta tem certezas". Mas isso não encerra a questão, não é definitivo, não a esclarece em nada. A pergunta regressa uma e outra vez, e nem o "sim" nem o "não" a deixam satisfeita. Teoriza "lembraste daquele livro? Há uma pedrinha para o sim e para o não, e eu pergunto-me se ele ainda gostará de mim, e a pedrinha diz que não". E há quem lhe responda: "Antes de mais, experimenta tirar uma pedra para ti, pergunta se será que tu gostas dele. Vais ver que não é assim tão linear, não hás-de ficar satisfeita, seja qual for a resposta". E, inteligente como é, ela própria sabe que são estratégias de diversão, a resposta, a existir, está dentro de si. A dada altura, diz que se acha egoísta. Quer estar com ele, quer ouvi-lo - sim, sobretudo, sente falta dos "momentos que tinham" - mas receia que a distância os tenha afastado, receia que o entendimento que tinham, tão cúmplice, tão único, se tenha perdido para sempre e, percebe, diz que aliás só percebeu agora, precisava mesmo disso. É por isso que se acha "egoísta", quere-o por perto, que que ele a oiça, quer que ele se conte, que se abra, que volte a falar-lhe no tom que só usava para ela. Depois, há quem lhe mostre que nada disto é, e ela sabe-o, sinónimo de amor. Entretanto, diz que há coisas que queria "viver" antes de se ligar a alguém assim. Queixa-se da rotina, queixa-se da monotonia, queixa-se do vulgar. Mas diz que, sem dúvida, aquela pessoa ficaria perfeita na sua vida se tivesse entrado na altura certa. Primeiro, tinha de ter vivido a vida sobre o joelho, tinha que ter vivido algo intenso, fugaz, inesquecível, que alimentasse até aos seus últimos dias a sua sede de aventura e de alternativo. Alguma coisa que, depois de acabada, ainda suscitasse risos, abraços, piscar de olhos amigáveis, que começasse sem grande aviso e acabasse sem grande aparato para que fossem melhores amigos, daqueles invulgares, para sempre. E essa pessoa, teria de estar no seu casamento um dia, e estaria debaixo do seu braço numa fotografia, e havia de provocar o noivo - esse sim, o tal de que gosta, o tal da rotina - com insinuações sobre a tal pessoa, só para o ver oscilar nos seus encaixes de normalidade, só para o lembrar que o tempo de viver aventuras já tinha passado, agora chegara o tempo de se sentar e ser outra na multidão, para sempre e, que para caminhar a seu lado nessa multidão, o escolhera a ele. Mas gosta dele. Não, reconsidera, se calhar não gosta. Mas soa-lhe tão errado este "não gostar", que reformula "gosto sim... mas não é bem assim". Não é "bem" assim, mas é "um bocado" assim. Então, gosta ou não gosta? E depois, se essa pessoa com quem passaria o resto da sua vida, que seria o seu refúgio, o seu conselheiro, o seu porto de abrigo estável e fiável, e se essa pessoa se cansar, simplesmente, de esperar?

Não sei se estão a ver, é que... (You see, it's just that - é sempre mais bonito na língua inglesa) ela não o tinha imaginado assim, não tinha planeado que viesse a ser assim. Já tinha uma ideia do que queria para a vida, do seu "ideal" ou, se calhar, nem sequer tinha pensado muito nisso. Mas havia algumas coisas que tinha como certas, algumas "pessoas" que não poderiam vir a ser "o tal", baseada em coisas como - a rotina. Acusa-o disso, quer viver, quer fazer asa delta, quer meter-se numa carrinha e correr o país, quer conversar em vãos de escada e quer ser livre para ir onde quiser e para viver a juventude enquanto puder. Mas aí veio esta pessoa inesperada, esta pessoa completamente deslocada do que já tinha como seu, como "possívelmente" seu, como o seu futuro. Ficou perdida, é óbvio. O que fazer com alguém "precioso", nas suas próprias palavras, como ele, se não tinha antevisto a sua chegada? Se já havia coisas que tinha planeado antes de ele chegar? O que fazer com ele, tão único nalguns aspectos, mas tão pouco como ela noutros? "O que faço? Eu não quero perdê-lo!". "Achas que são suficientemente maduros para continuarem amigos depois de tentarem?". "Não, não acho". E agora?

Ela que lhe abra alas, que lhe arranje espaço, que arrume a casa para o receber. Ela que saiba do que está disposta a abdicar, do que não pode abdicar, do que vale a pena. Metê-lo na gaveta não dá, não é justo. Ela pode não querê-lo agora, mas não se alegra com a possibilidade de vê-lo com outra, essas ideias altruistas não se aplicam quando se tem o coração na forca prestes a ir. E se, querendo-o, destruir o lugar onde já tinha imaginá-lo metê-lo? Algures lá ao fundo, algures num futuro cujos traços ela ainda não vislumbra?

E eu pergunto: e ele? E ele que esperou por ti, quando foste? E ele que, se ama, e se tem consciência do peso da palavra, não deixou de amar por causa de tempo ou por causa de distância? E ele, que fica na gaveta, sem grandes opções se não, agora que se achou, voltar a perder-se? E ele que, enquanto não pensas nele, enquanto não estás com ele, vive a cada instante, está quando estás, respira quando respiras, vê tv enquanto lês livros, viaja enquanto caminhas na tua rua, assiste a futebol enquanto comentas as tuas ocupações no café? E ele que, ainda que não durma no mesmo intervalo em que tu dormes, existe a cada segundo e, se ama, sente a cada instante a tua falta? Saudade que cala, porque as pessoas tanto calam o ódio como calam o amor.

O meu conselho é: se é para cair, cai. Se é para viver, vive. Se é para magoar, magoa-te também. Ele não é sinónimo de prisão nem de privação, ele não é um concorrente, não é vidro que parta se tiveres de sair nem é flor que murche se tiveres de viajar, nem cão que fique com o vizinho se fores de férias. Não é criança e não abarca projectos maiores que os braços. Se a consciência for dos dois, o erro é dos dois. Quando o erro é dos dois, é do senso comum que o erro é de nenhum.

PS - Não duvides, se lhe dás crédito, que a palavra que usou um dia morreu abafada pelo tal tempo e pela distância. Palavras dessas não morrem em meses, nem às vezes em anos, nem às vezes em vida. Ainda que venha alguém que a sobreponha, não a apaga, nem que fique como quadro na sala principal da nossa memória, enquanto o outro dança no centro, tão real quanto vivo.

Já pensaste que ele pode sentir isto?

«Can I just be something,
Somewhere in your room,
That you won't notice.

Maybe I'll be paper,
Or books thrown on your floor,
Move me when you want to.

I'll live where you put me,
In your VCR,
If I become a cassette.

Or on top of your computer,
If that's where I would fit,
Then so be it.
When you move out I'll stay,
Until I'm thrown away,
But then it won't matter.»


Armor for Sleep - Kind of Perfect


 (desenho by celia)
6 Março 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário