16 de nov. de 2010

tulipas amarelas

Hoje desci ao meu quintal, ainda não era 1h. Não havia lua no céu ou, pelo menos, estava fora do meu alcance visual. Eu sei que, quando tiro algum tempo para mim, nem que sejam os três minutos que dura a Yellow Ledbetter e o cigarro, descubro alguma coisa que estava lá e que eu não conseguia ver. Hoje, podia ser apenas a Ursa Menor. Sei que há uma estrela que me chama sempre a atenção e que gosto dizer que é a minha estrela. Ainda não a baptizei. Talvez um dia alguma coisa faça tanto sentido na minha vida que seja óbvio qual é o nome dela. Procurei dentro de mim se me sinto um bocado mais sozinha que antes. Mas o céu acima de mim, com todas aquelas constelações sobre as quais nada sei mas cuja beleza não consigo deixar de admirar, pareciam gritar-me: nós continuamos aqui. Há pessoas que consideram que o mais certo que têm é o chão debaixo dos seus pés. Eu já o senti abrir-se muitas vezes. A única coisa que nunca mudou foram mesmos esses brilhos, como espelhos de luz, acima de mim. A meio do cigarro descobri a Ursa Menor mesmo em frente a mim. Ela esteve lá sempre, suficientemente longe para que não a visse sem tomar atenção, suficiente perto para a distinguir das restantes constelações mesmo sem óculos. Se tivesse olhado melhor, teria visto que ela esteve lá sempre. E se a vida for como um cigarro? As primeiras baforadas serão sempre as melhores, dificilmente alguém contesta isso. Mas são também as mais inconscientes. Estou a apreciá-lo, como início de qualquer coisa, sem estar suficientemente fundo em mim para entender alguma coisa. Conforme os minutos passam, vou tomando consciência de mim e do que estou a fazer no quintal, à uma da manhã, com o mundo adormecido ao meu redor porque amanhã começa outra semana e só o céu como testemunha. Tenho o meu canto, no meu quintal, acima das escadas, no antigo pombal do meu avô. Em redor, não há uma única janela da vizinhança aberta ou iluminada. É como se estivesse sozinha. Quando desço para o quintal em momentos assim é porque o meu inconsciente mo exige. Visto uma sweat por cima da camisa de dormir, calço umas meias e vou encolher-me no meu canto. No canto onde quis, um dia, que alguém me fosse salvar. No canto onde me disseste um dia, ao telefone, que não salvas ninguém. Hoje descobri que, depois de mo teres dito, decidi que não precisava de ser salva. Mas como muitas outras coisas que decido, não é real. Não posso decidir algumas coisas e, quando as decido, embarco em farsas que me atormentam, porque lá no fundo eu sei que são teatro. A música entra naquele momento da guitarra em que me elevo mais um bocadinho. Afastei o pensamento de salvações e lembrei-me de passar um bom tempo à noite, na praia com elas. E também aí não me senti sozinha. Os melhores momentos que vivi, acho que posso dizê-lo com verdade até hoje, foram aqueles em que pulei por entre as ondas e deixei que os salpicos me molhassem, com uma camisola de lã, o cabelo ao vento e os pés descalços. Não está lá ninguém porque ficam todos no paredão – e graças ao universo que assim é. Preciso tanto de mim. Preciso tanto do mp3 no bolso para não cair à água enquanto corro, enquanto quase voo, de braços abertos e o mundo no peito a brincar comigo através das ondas que vêm e vão. Se alguém me vir, julga que sou doida. Também isso já aprendi a ignorar. Talvez os doidos sejam os mais felizes. Aprender a viver comigo é mais importante do que aprender a viver com alguém. As pessoas vão e vêm. E eu nunca fui, nunca fugi de mim, por isso não tenho de regressar. É claro que há momentos em que penso com menos clareza, mas obrigo-me a encontrar a verdade das situações e a enfrentá-la.
Não, não estou sozinha. Não, as ruas não estão vazias porque descortinei-lhes outros encantos. Mas a escola estava meio vazia hoje, quando fui lá votar com a minha avó. Por isso apertei-lhe a mão e encostei-me a ela. Pensei «Esta gente que nos vê deve pensar que sou uma dondoca de mãos dadas com a minha mãe, e devem pensar que só o faço porque ela me cumpre os caprichos todos». Senti-me tão bem comigo e com a minha vida por saber que nem ela me faz todos os caprichos, nem é minha mãe, nem eu lhe dou as mãos com frequência… Quando dou, ela fica surpreendida e feliz, e também eu fico por me saber com coragem para essas demonstrações de afecto. As minhas irmãs estão a crescer demasiado depressa. Tenho de me manter ocupada para não ver o vazio à minha volta. Não o das ruas, mas o de outra coisa que não sei verbalizar. Tenho feito a cama e, acredita, é inédito. Tenho feito o jantar, hoje fiz um bolo. Enquanto o fiz, as minhas irmãs estavam perto de mim, na mesa da cozinha. Estranhei por um instante que a Cláudia não preferisse aproveitar para ver televisão, já que eu largara a autoridade sobre o comando durante alguns minutos. Deixei-a bater as claras. A Ana ia inclinando a cabecita para o lado, para fintar pacotes de farinha e de açúcar e para conseguir ver o que se passava no recipiente de vidro onde eu ia misturando os ingredientes. É claro que no fim pôde lamber a colher de pau. Acho que gostam de estar comigo e os momentos em que largo o computador para dar mimos à Ana, quando se ela se rebola na cama da avó ou no sofá multiplicam-se. Quanto à Cláudia, não consigo mostrar tanto afecto: ela é suficientemente grande para se aproveitar do meu amor, se este for declarado, e para violar a minha autoridade. A minha avó já diz que ela me imita quando estou fora a dar ordens e a ameaçar a mais nova com a colher de pau. Sem falar que tem a minha língua, com a resposta rápida e desarmante – quantas vezes não pestanejo três vezes até desistir por não conseguir dar-lhe uma resposta à altura?
A minha mãe ficou de vir cá ontem (Domingo) às 14h, para eu lhe pintar o cabelo e irmos votar juntas a seguir. Às 15h15, não tendo ainda chegado, saí pela porta com a minha avó para tratar da minha vida sem mais esperas. Passei a vida à espera, já to disse. Da minha mãe, do príncipe encantado, dum pai que se dê legitimidade a esse conceito, de alguém que me salvasse, em boa verdade. Eu tinha decidido, até há algum tempo, que faltava qualquer coisa que me fizesse sentir completa e atenuasse um bocado a tal sensação de vazio. Mas acho que embora já o soubesse, só agora deixei que isso fizesse parte racional de mim. Eu não preciso que ninguém lute as minhas lutas. Pondo de lado o radicalismo, talvez tenha precisado, sim, de um pai ou de, pelo menos, uma mãe mais presente e pontual. Talvez precise de alguém ao meu lado, sim, a seu tempo. E talvez o facto de estar sozinha seja mais uma escolha do que uma circunstância. Detesto quando me olham com pena por me verem sozinha. Detesto que a primeira pergunta que me fazem sempre seja: «Já tens namorado?». Será que não é legitimo que talvez não encontre ninguém que ache que valha a pena? Será que é mais importante ter «um namorado» que sei, no íntimo, que não é o tal, menos digno de pena, talvez, do que continuar sozinha a saber que estou no caminho certo? Uma vez encontrei-me com uma rapariga cigana que adoro, na rua, e ela estava com a mãe. Chama-se Emília e é da minha idade. A irmã, dois anos mais velha, é casada de acordo com as tradições deles e têm três filhas. A mãe da Emília pergunta-me sempre «Já tens namorado?», e a minha resposta nunca variou: «Ainda não encontrei o tal». Da última vez estava ao lado da Emília quando lhe dei essa resposta e ela apontou para a filha e disse, a abanar a cabeça: «Ah, então és aqui como a Emília, está à espera do príncipe encantado». E a Emília, que sempre achei bonita, ficou ainda mais bonita nesse instante. Olhei para ela e pensei: admiro-te, Emília, se consegues ser romântica e fiel às tuas convicções neste mundo sem princípios. E, por conclusão lógica, aprendi a gostar também um bocadinho mais de mim por isso. O cigarro apagou-se, como a vida também se apaga um dia. Foi bem aproveitado. Descobri que esta noite não fui ao quintal para chorar nem para me lamentar. Fui para descobrir a Ursa Menor. Fui para descobrir que a minha vida serão lindas tulipas amarelas que andei a plantar durante quase vinte anos. Não há um único bolbo podre lá atrás - ceifei-os todos antes que comprometessem o meu jardim. «O tempo é algo que não volta atrás, por isso planta o teu jardim e decora a tua alma ao invés de esperar que alguém te traga flores – William Shakespeare».

Se tiverem de mas trazer, não aceito outras que não tulipas amarelas.
Pearl Jam - Yellow Ledbetter
30 Novembro 2009

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